A quem mudar?
O iraniano Bayazid Bistâmi, grande mestre do sufismo, deixou por escrito uma experiência sua, que volta e meia trago-a presente para meu proveito pessoal. Especialmente neste tempo pandêmico que estamos vivendo, a referida experiência tem uma grande atualidade. Ei-la:
“Na juventude, eu era um revolucionário e assim rezava: ‘Dai-me energia, ó Deus, para mudar o mundo’. Ao chegar à meia-idade, notei que metade da vida já passara sem que eu tivesse mudado ser humano algum. Então, mudei minha oração, dizendo a Deus: ‘Dai-me a graça, Senhor, de transformar os que vivem comigo dia a dia, como minha família e meus amigos; com isso já ficarei satisfeito’. Agora que sou velho e tenho os dias contados, percebo bem quanto fui tolo assim rezando. Minha oração, agora, é apenas esta: ‘Dai-me a graça, Senhor, de mudar a mim mesmo’. Se eu tivesse rezado assim, desde o princípio, não teria esbanjado a minha vida”.
A experiência da pandemia, certamente aflorou bem mais o desejo do nosso ego de querer “mudar o mundo” e “mudar o outro”. Como nunca, através especialmente pelos meios virtuais, as fórmulas de “mudar o mundo” e “mudar o outro” multiplicaram-se. Algumas delas até foram e são propagadas como quase infalíveis e absolutas. Esse desejo do nosso ego, aflorado pela experiência da pandemia, é saudavelmente bem-vindo.
Mas, o nosso Sufi Bayazid, com a sua experiência transmitida, nos faz ver que enquanto o ego se compromete com a tarefa de “mudar o mundo” e “mudar o outro”, ele corre o risco de não fazer o essencial, que é olhar para si mesmo. Mergulhar em si mesmo é a última coisa que faz, porque o ego está fixado na superfície e nas aparências, não na profundidade. Daí ser mais fácil olhar para o mundo e para o outro, examinando-os e querendo-os mudar. Porém, como o grande mestre Sufi deixa claro na sua experiência, acaba-se desperdiçando o tempo, jogando fora toda uma vida.
Aqui precisamos evocar o Mestre dos Mestres, Jesus Nazaré. Ele, que veio transformar o mundo e a humanidade (“os outros”), foi categórico na sua proposta de mudança: ela acontece na mudança de cada ser humano, e, assim, como consequência, a mudança do mundo e da humanidade (“dos outros”). No seu Sermão da Montanha, a proposta definitiva de mudança de um mundo velho para um mundo novo, de um mundo perdido para um mundo salvo, de uma humanidade velha para uma humanidade nova, de uma humanidade envolta no pecado para uma humanidade salva,passa por seres humanos “bem-aventurados”. E seres humanos bem-aventurados anunciados por ele, são seres “pobres de espírito”, “complacentes de vivência”, “mansos de coração”, “sedentos de justiça”, “ávidos de misericórdia”, “puros de coração”, “promotores da paz”, “perseguidos por causa da justiça” e “injuriados por causa do Reino de Deus” (cfMt 5).
Este mesmo Mestre, Jesus de Nazaré, quando já estava rumo à cruz pela qual mudaria o mundo e a humanidade (“os outros”), deixou claro, usando a imagem do alimento ingerido para falar da origem do puro e impuro, que a mudança vem de dentro: “Não o que entra de fora pela boca torna alguém impuro, mas sim o que vem do coração; é dele que saem as más intenções: homicídios, adultérios, fornicações, roubos, falsos testemunhos, blasfêmias” (cfMt 15). É o que o Sufi Bayazid entende quando fala da mudança que deve acontecer “em mim mesmo”.
A título de conclusão: A quem mudar? Onde veremos a mudança “no mundo e nos outros”? Pois, mudemos a nós mesmos: “sabendo que o que vem do coração precisa ser puro”! Construamos um mundo melhor: “sendo seres humanos bem-aventurados como pobres de espírito, complacentes de vivência, mansos de coração, sedentos de justiça, ávidos de misericórdia, puros de coração, promotores da paz, perseguidos por causa da justiça e injuriados por causa do Reino de Deus”! Sonhemos com uma humanidade nova a partir da pandemia covídica: “suplicando em oração a graça de mudarmos a nós mesmos sem esbanjamento de nossa vida”!
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo de Pelotas