60 anos após o início do Concílio Vaticano II, o decreto conciliar Ad Gentes continua a ser o marco fundamental que possibilitou uma revolução no conceito de missão e na atividade missionária da Igreja.
“Ide pelo mundo inteiro e anunciai a boa nova a toda a humanidade” (Mc 16,15) é a ordem que Jesus Cristo deu aos seus discípulos e a toda a Igreja posterior. Os cristãos de todos os tempos levaram a sério esta ordem e partiram pelo mundo a fim de evangelizar os povos. O Vaticano II, fiel a este marco inicial, procurou atualizar a ordem de Jesus, resgatando a disposição e o vigor dos primeiros cristãos para fundamentar e incentivar a ação missionária comprometida, humanizante, libertadora, global, descentralizada, inculturada e protagonizada também por leigos que testemunhamos atualmente.
Anunciar o evangelho de Jesus Cristo não é apenas mais uma atividade da Igreja, mas é a sua razão de ser, conceito muito bem expresso pelo Concílio que afirmou: «A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito Santo» (Ad Gentes, n. 2). A partir desta afirmação desenvolve-se toda a sua fundamentação teológica: assim como a Igreja, a Missão também se funda na Trindade.
Provavelmente esta clareza de ideias só foi possível porque a Ad Gentes (AD) foi lançada na última fase do Concílio, bebendo da riqueza teológica dos demais documentos, especialmente da Lumen Gentium, de onde busca essa base trinitária. O decreto sobre a atividade missionária da Igreja foi aprovado no dia 7 de dezembro de 1965, com 2394 votos a favor e apenas 5 contra. Mas estes números não revelam a grande discussão anterior, com as intervenções de cerca de 200 padres conciliares, mesmo após cuidadosas e sucessivas redações. Após receber 177 propostas, uma comissão elaborou o texto, que ficou bastante jurídico, com preocupação administrativa. O Concílio desejava algo mais teológico, de ordem prática. O texto final, com seis capítulos e 42 parágrafos, apresenta um equilíbrio entre os dois extremos.
Logo no proémio, a Ad Gentes apresenta a vocação missionária da Igreja: «A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser “sacramento universal de salvação”, por íntima exigência da própria catolicidade, obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente anunciar o Evangelho a todos os homens.» A Igreja, que é sal da terra e luz do mundo, é chamada a salvar e renovar as criaturas e instaurar o Reino de Deus.
No capítulo I temos os princípios doutrinais, cujo fundamento é a Trindade. A Missão da Igreja tem origem na missão do Filho e do Espírito Santo, que é fazer todos os homens participarem da natureza divina. Aquilo que Ele ensinou e pregou deve ser proclamado em toda a terra, conforme nos relatam Mt 28,19-20 e Mc 18,15 (cf. AG 3). A Igreja tem por dever propagar a fé e a salvação em Cristo. Neste capítulo vemos ainda o conceito de missão: ação de pregação aos povos com o fim de evangelizar e santificar. Segundo o missionário verbita Jorge Fernandes, «alguns membros da comissão eram claramente favoráveis a manter uma visão “geográfica” da missão, entre eles Yves Congar. Outros diziam que não faz sentido falar das missões, mas sim da “missão” da Igreja. A missão é a essência da Igreja. Não é algo que se possa separar dela». A razão de ser da missão é uma só, ou seja, que todos os homens sejam salvos em Cristo, único mediador (cf. 1Tm 2,4) e visa a que todos formem um só Povo de Deus, se unam num só Corpo de Cristo e edifiquem um só Templo do Espírito (AG 7). Daí ser a Missão o próprio agir de Deus na História (AG 9).
A temática da “obra missionária” é desenvolvida no capítulo II. A Igreja deve dirigir-se a todos. Primeiramente pelo testemunho cristão de vida e de caridade (AG 11 e 12). Depois através da pregação do evangelho e a reunião do povo de Deus (AG 13 e 14). Segundo o documento, a atividade missionária deve seguir dois momentos fundamentais: primeiro a implantação/começo e posteriormente o crescimento e criação da Igreja local. Os missionários devem fazer nascer a assembleia de fiéis, formar o clero local, suscitar catequistas e religiosos (AG 15-18).
Com o progresso das missões, forma-se a Igreja local, tema do capítulo III (AG 19-22). Os missionários devem favorecer a maturidade em todos os sectores da vida cristã, seja na liturgia, na prática da justiça e da caridade, no serviço, na vida familiar. Isto sempre sob a orientação do bispo e do Papa, responsáveis imediatos pelas Missões.
Os missionários têm um papel de destaque no documento. A eles é dedicado o capítulo IV (AG 23-27), onde se fala sobre a sua vocação (Cristo chama os missionários sacerdotes, religiosos e leigos e suscita institutos), espiritualidade, formação espiritual e moral (sejam homens de oração, virtude, sacrifício e saibam inculturar-se), formação doutrinal e apostólica (sejam «nutridos com as palavras da fé e da doutrina» 1Tm 4,6), e sobre os Institutos (AG 28).
O capítulo V trata da organização da atividade missionária. A organização geral está a cargo do corpo episcopal e da Congregação de “Propaganda Fide” (AG 29), hoje Dicastério para a Evangelização. A organização local está a cargo do bispo e a regional à conferência episcopal. Há uma orientação para que os institutos estejam em sintonia entre si e sigam as orientações dos bispos, além de obedecerem aos seus superiores. Neste capítulo há ainda um belo conceito que resume a universalidade da Missão: como cada um possui diferentes dons, os cristãos são chamados a colaborar na evangelização segundo os seus próprios carismas e ministérios (AG 28). O Concílio convoca assim a uma renovação interior para que todos tomemos consciência das próprias responsabilidades na missão, tema que ocupará o capítulo VI.
É dever do povo de Deus (todos os fiéis) estar comprometido em expandir o seu corpo e evangelizar na vida quotidiana (AG 36) e das comunidades cristãs dar testemunho de Cristo perante as nações (AG 37). É dever dos bispos, consagrados para continuar a obra de Cristo salvar o mundo todo, enviar missionários e promover as missões (AG 38). É dever dos padres, como representantes de Cristo, ensinar, governar e santificar o povo (AG 39). É dever dos Institutos, parceiros essenciais na obra missionária, converter as almas (AG 40) e dos leigos dar testemunho e acompanhar obras, suscitar vocações nas famílias e nas escolas, além de oferecer doações (AG 41).
Além do modo Trinitário de conceber a Missão, já assinalado acima, vemos aqui uma grande renovação na prática das Missões, com um caminho de maior protagonismo para as Igrejas locais, uma grande abertura ao comprometimento dos leigos na missão universal, uma preocupação com o missionário e o povo evangelizado e acenos a questões culturais desenvolvidas em textos posteriores como Evangelii nuntiandi e Redemptoris Missio.
Vários documentos desenvolvem os temas presentes na Ad Gentes, inclusive a mensagem anual do Papa, por ocasião do Dia Mundial das Missões, este ano celebrado no dia 23 de Outubro, com o tema «Sereis minhas testemunhas» (At 1,8). O Papa Francisco recorda na sua mensagem para esta ocasião que «o citado Dia proporciona-nos a ocasião de comemorar algumas efemérides relevantes para a vida e missão da Igreja: a fundação, há 400 anos, da Congregação de Propaganda Fide e, há 200 anos, da «Obra da Propagação da Fé; esta, juntamente com a Obra da Santa Infância e a Obra de São Pedro Apóstolo, há 100 anos foram reconhecidas como Pontifícias.» O conteúdo da mensagem aprofunda três expressões-chave que resumem os três alicerces da vida e da missão dos discípulos: «Sereis minhas testemunhas», «até aos confins do mundo» e «recebereis a força do Espírito Santo».
Que o Dia Mundial das Missões seja ocasião propícia para meditarmos o decreto conciliar e principalmente a colaborar, conforme os nossos dons, na Missão da Igreja.
* Fr. Darlei Zanon, religioso paulino