Dai-lhes vós mesmos de comer

Iniciamos o tempo litúrgico da Quaresma, em preparação para a Páscoa, principal festa dos cristãos. Neste período somos motivados pelo próprio Jesus a realizar três exercícios espirituais: jejum, esmola e oração (cf. Mt 6,1-6). O jejum estimula a relação consigo próprio; a esmola, com os irmãos, e a oração com Deus. São exercícios espirituais complementares e não excludentes.

No Brasil temos uma bela tradição de trabalhar durante a Quaresma a Campanha da Fraternidade, que a cada ano escolhe um tema urgente em nossa realidade. O tema que grita por conversão em nosso país neste ano é “Fraternidade e Fome”, com o lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer”! (Mt 14,16).

A fome no Brasil já existia, mas foi agravada pela pandemia da COVID-19, que iniciou em março de 2020. Temos 125,2 milhões de brasileiros que nunca sabem quando terão a próxima refeição (31).

Todos concordamos que viver com fome a ponto de revirar o lixo em busca de algo para comer não é algo natural ou desejado por Deus. Escandaliza quando nosso país, a cada ano, bate recordes na produção de alimentos. Somos o país com o maior número de cristãos do planeta, mas a realidade da fome não nos identifica com o Evangelho de Jesus. Falta-nos conversão para olhar a realidade com sinceridade e perceber as necessidades do outro, aprender a repartir para que ninguém passe fome.

“A Quaresma é um Tempo propício para que cada um de nós reconheça que o Evangelho tem profunda incidência social, que é dever e também direito da Igreja lidar com essas questões, que ela é sempre mais fiel ao Senhor, deixando-se interpelar e colocando-se a trabalhar, no âmbito que lhe é próprio, pela salvação integral de todo ser criado e para sempre amado por Deus. Nisso se inclui o compromisso pela justiça social” (32).

A ONU (Organização das Nações Unidas), em 2002, definiu: “O direito à alimentação adequada é um direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garantam uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva” (36).

Muitas são as causas da fome no Brasil que podem ser enumeradas como: fatores climáticos, as guerras e os desastres naturais de todas as espécies, mas as causas principais são estruturais: como a histórica divisão das terras no país e a política agrícola, que coloca a produção de alimentos a serviço do sistema econômico-financeiro mundial. Se produz para exportar e não para matar a fome dos brasileiros. Se produz para exportar e lucrar, a prioridade maior é o lucro. No entanto, “as raízes da fome estão, especialmente, na distribuição da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais” (54).

Que esta Campanha da Fraternidade nos faça refletir e, no que depender de cada um, agir para mudar este perverso quadro, que não é da vontade de Deus.

Fonte e citações: Texto Base da Campanha da Fraternidade 2023

Dom José Mario Scalon Angonese – Bispo de Uruguaiana