Educação Escolar Indígena
Para falar de educação é sempre importante lembrar que ela é um processo amplo, contínuo, que acontece ao longo da vida de cada pessoa e não se restringe às experiências de escolarização.
A escola é uma instituição que adquiriu grande relevância na era moderna, nas sociedades ocidentais, e nelas se consagrou como espaço central de socialização da pessoa, bem como de aquisição de conhecimentos e de inserção da pessoa no mundo social.
A escola não apenas socializa conhecimentos, ela também produz experiências cotidianas num espaço particular, que vão integrando as crianças e jovens em uma lógica de sociedade e, ao mesmo tempo, produzindo o lugar social que eles podem ocupar. Como esta instituição está inserida numa sociedade capitalista, ela reproduz e dá coesão a esse modelo, colaborando para desenvolver nos estudantes certas disposições, certos valores e certos anseios. Uma das premissas mais importantes deste modelo de escola é a individualização – cada estudante constrói, no espaço-tempo escolar, uma trajetória exclusiva e vai sendo avaliado com medidas de desempenho, provas que permitem sua aprovação ou reprovação e sua progressão nos níveis do ensino. O que isso nos ensina? Em especial, a experiência escolar nos ensina a sermos indivíduos voltados para nós mesmos, capazes de avaliar nosso desempenho em relação ao dos demais, aspecto que colabora para ajustar cada pessoa a um mundo individualizado e concorrencial.
Em diversos momentos coletivos de reflexão, os povos indígenas têm afirmado que assumir a educação escolar é um grande desafio, e a razão principal não é o desconhecimento de procedimentos didáticos ou de conteúdos curriculares, mas o fato de serem lógicas distintas as que fundamentam a organização da escola e a vida em suas comunidades. É desafiador para eles colocar lado a lado suas próprias instituições educativas, que primam pela produção de uma pessoa para viver em comunidade, e a instituição escolar, que reproduz relações capitalistas e produz a individualização, a competição, a hierarquização, a seleção dos melhores.
Como, então, tornar esse modelo de escola compatível com os valores e práticas da vida em comunidade?
Florestan Fernandes (1989) e Bartomeu Melià (1979) afirmam que os povos indígenas possuem espaços e tempos educativos próprios, dos quais participa a pessoa, a família, a comunidade, sendo a educação assumida como responsabilidade coletiva. E ela acontece em processo: ao longo de sua vida uma pessoa está sempre aprendendo.
Os autores também afirmam que a educação indígena é viva e exemplar, e isso quer dizer que a pessoa aprende pela participação na vida, pela inserção no cotidiano, observando o exemplo de outros e agindo (fazendo junto).
O fundamento da educação indígena é a tradição e a memória coletiva, que é constantemente atualizada nas palavras dos mais velhos. Para aprender, as novas gerações são estimuladas a participar, inseridas em grupos e vão assumindo responsabilidades, realizando trabalhos, participando de vários tipos de atividades.
Educação é, assim, vista de maneira abrangente e as concepções de educação são tão variáveis quanto são as culturas dos povos indígenas.
A escola é um dos espaços nos quais as crianças indígenas aprendem, mas é no cotidiano e na convivência dentro da comunidade que elas aprendem a ser “um bom guarani”, “um bom Kaingang”, “um bom Truká”, “um bom Xavante”, “um bom Mnya Guarani”, “um bom Xokleng”.
Quando a educação escolar é destinada aos indígenas, é necessário considerar que os modos de organização curricular e as práticas pedagógicas precisam ser construídas de diferentes maneiras, respondendo às necessidades e anseios de cada etnia e devem estar alicerçadas nas variáveis maneiras de pensar e de educar.
Uma escola que mantém práticas individualizantes, competitivas, desiguais, classificatórias, não serve a uma cultura que se produz a partir de outras formas de relação e de outros valores sociais, e por isso precisa ser reinventada.
As informações históricas e antropológicas sobre o processo educativo da maioria dos povos indígenas são escassas e fragmentadas, mas sabe-se que a oralidade é um de seus alicerces. E não podemos esquecer que a escrita é o código a partir do qual a escola institui verdades e conhecimentos. Se a tradição oral é o meio de produção e de transmissão dos saberes e das culturas indígenas – através das histórias, dos mitos, dos conselhos, das palavras de cura, das explicações sobre o mundo e sobre a origem das coisas – as escolas indígenas precisam, então, desenvolver estratégias pedagógicas que assegurem o lugar da oralidade, valorizando e fortalecendo essas práticas, em especial o uso das línguas indígenas que não necessitaram desenvolver escrita alfabética.
O que significa traduzir a oralidade em escrita? Será possível comunicar a riqueza e a pluralidade das formas de expressão orais sem reduzi-las e empobrecê-las? Foi em decorrência da tradução da oralidade para a escrita, e da tradução das lógicas indígenas para a lógica ocidental que as culturas indígenas (e africanas) passaram a ser vistas como pobres, menos complexas, pouco estruturadas e tantas outras afirmações que encontramos em documentos e textos acadêmicos. Mas é um equívoco pensar que algo não é complexo porque não se compreende tal complexidade.
As culturas indígenas são sábias, complexas, sustentam-se em bases sólidas, capazes de mantê-las vivas mesmo com séculos de colonização e possuem estruturas dinâmicas, por isso estão sempre se modificando.
Mesmo com todos os desafios colocados para os povos indígenas quando estes decidem instituir uma escola, esta instituição é considerada importante quando está a serviço das lutas políticas e identitárias.
As palavras indígenas proferidas em encontros e reuniões que problematizam a experiência escolar, afirmam o quanto eles procuram delimitar o lugar político da escola. Há expressões usadas nas falas indígenas que mostram que a escola só tem sentido se estiver subordinada às lutas políticas pela garantia da terra e pela conquista plena de seus direitos.
Os povos indígenas qualificam a escola como “formadora de guerreiros”, “específica e diferenciada”, e delimitam sua função: “escola para aprender a ler um documento”, “a serviço da comunidade”, “uma escola indígena e não uma escola com peninhas”, “escola para formar nossos próprios advogados, médicos, enfermeiros, professores…”, “para não depender mais dos brancos”, “para não sermos mais explorados”, “escola inserida na luta pela terra”, “escola na retomada”, “escola para aprender a língua”.
Os processos coloniais que constituem nossa história são, no contexto atual, interessantes para pensarmos na inversão que os povos indígenas buscam realizar quando assumem a escola e seus processos como algo relevante. Se a instituição serviu, em grande medida, para “vestir o índio” com roupagens culturais impostas, na atualidade as lutas destes pelo direito a uma educação específica e diferenciada buscam “despir” a escola para torná-la adequada aos seus modos de educar e aos seus projetos de futuro.
No Brasil, as primeiras escolas para indígenas eram centradas na catequese e ignoraram as instituições educativas indígenas, por considerá-las primitivas, bárbaras e sem futuro.
Os modelos de educação escolar impostos aos povos indígenas visavam desarticular as comunidades e desagregar as formas tradicionais de reciprocidade e de fortalecimento das identidades indígenas.
A oferta de educação escolar aos povos indígenas nas primeiras décadas do século vinte estava em sintonia com um projeto de integração gradativa destas populações e dissolução das diferenças culturais. Se tomarmos o que dizia o Código Civil de 1916, veremos que naquele texto legal os índios eram vistos como “relativamente incapazes, sujeitos ao regime tutelar enquanto não forem adaptados à civilização do país”.
As Constituições Federais de 1934, 1946 e 1967 previam a “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” e a Lei 6001 de 1973 – Estatuto do Índio – afirmava a necessidade de “integrá-los progressiva e harmoniosamente à comunhão nacional”, estendendo a eles o sistema de ensino e a criação de escolas orientadas para este fim. Já a Constituição Federal de 1988 alterou essa perspectiva de relacionamento do estado com os povos indígenas, admitindo que a educação é um processo que ocorre de modos distintos e por meio de pedagogias e instituições próprias em cada cultura. Esta Constituição reconheceu aos índios, no Artigo 231, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” e no Artigo 210, § 2º “a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.
Mas o que significa o reconhecimento do direito de utilização dos processos próprios de aprendizagem dos povos indígenas? Significa, para dizer o mínimo, que a escola terá que ser recriada em cada localidade, para levar em conta as maneiras próprias de educar, de socializar, de produzir uma pessoa capaz de viver naquela sociedade particular. A escola precisa, então, ser incorporada e transformada pelas pedagogias indígenas.
No Brasil vivem 304 povos indígenas, falantes de 210 línguas, portanto não é possível pensar em uma “escola indígena” no singular – única, genérica, com um currículo aplicável em qualquer contexto. As maneiras de educar são distintas, como são também as culturas indígenas e é para essa diferença que a instituição escolar precisa se abrir.
Em décadas recentes foram surgindo diferentes experiências de organização da educação escolar indígena em várias regiões do Brasil, respeitando as culturas e projetos de vida indígenas. No entanto, muitas dessas experiências são fragmentadas e descontínuas, sendo a oferta oficial de educação escolar indígena, em estados e municípios, ainda marcada pela escassez de recursos, imposição de programas, desrespeito às decisões indígenas, falta de professores e de investimentos na qualificação dos profissionais indígenas.
Um quadro de negligência e de desrespeito aos direitos indígenas
A negligência do governo tem muitas consequências: as escolas não dispõem de estrutura adequada para assegurar uma educação escolar de qualidade; não são assegurados processos de formação para os docentes indígenas nas escolas existentes; observa-se ainda o desrespeito às normativas que regulamentam a oferta de educação escolar aos povos indígenas.
A inadequação das estruturas se comprova, por exemplo, nas frequentes denúncias feitas por lideranças indígenas, relativas à precariedade das edificações escolares, sendo que, em algumas não ocorrem reformas há anos e existe risco de desmoronamento. Em outras, as condições são insalubres, não há água encanada, energia elétrica, rede de esgoto, instalações sanitárias adequadas ou o número de salas de aula é insuficiente para abrigar os alunos matriculados. Faltam professores em muitas escolas indígenas e há situações em que, ao invés de se realizarem concursos públicos, os professores são mantidos sob o regime de contrato temporário, o que tem implicações concretas sobre sua carreira no magistério e seus vencimentos.
Conforme o Parecer do Conselho Nacional de Educação CNE/CEB nº 13, editado no ano de 2012, os estados devem estruturar, nas Secretarias de Educação, instâncias administrativas de Educação Escolar Indígena com a participação de indígenas e de profissionais especializados, destinando-lhes recursos financeiros específicos. A falta de estruturas adequadas e de profissionais qualificados para atuarem com a educação escolar indígena tem levado ao desrespeito, demonstrado por alguns estados e municípios, a premissas já consolidadas legalmente. Algumas secretarias de educação insistem em negar aos índios o direito de terem escolas indígenas autônomas e específicas, com projetos pedagógicos próprios, com grades curriculares e calendários organizados a partir das culturas de cada povo.
Em manifestações coletivas, os povos indígenas têm denunciado a falta de abertura para a participação na elaboração e execução da política voltada à escola indígena, como também o desrespeito à premissa da consulta às comunidades para a implementação de ações, projetos e políticas que lhes dizem respeito.
Pode-se argumentar, assim, que embora haja uma retórica favorável aos povos indígenas, e um conjunto de normativas que respaldam um adequado tratamento, na prática eles continuam sendo desprezados, discriminados e desrespeitados de maneira intensa e contínua.
As dificuldades apontadas pelos indígenas para a participação efetiva nas ações e políticas que lhes dizem respeito mostram também que, para muitos estados e municípios, a oferta de educação escolar indígena específica e diferenciada é vista como uma regalia, uma concessão e não como um direito dos povos indígenas. E, no entanto, a luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de suas formas próprias de educar interessa a todos nós, Brasileiros, pois colabora para afirmar que somos uma sociedade multiétnica, multicultural e multilinguística.
Durante cinco séculos, os índios foram pensados como seres efêmeros, em transição: transição para a cristandade, a civilização, a assimilação, o desaparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indígenas são parte de nosso futuro e não só do nosso passado. A nossa história comum foi um rosário de iniquidades cometidas contra elas. Resta esperar que as relações que com elas se estabeleçam a partir de agora sejam mais justas: e talvez o sexto centenário do descobrimento da América tenha algo a celebrar (CUNHA, 1992, p. 30).
BERGAMASCHI, Maria Aparecida e SILVA, Rosa Helena Dias da. Da escola para índios às escolas indígenas. Presente! Revista de Educação, Ano XVI – Nº 63.
BRASIL, Ministério da Educação. Referenciais para a formação de professores indígenas. Brasília: MEC/SEF, 2002.
CUNHA, Maria Manuela (Org.). A história dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992.
FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec, 1989.
MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979.
Roberto Antonio Liebgott
Coordenador do CIMI Sul