Igreja e Sociedade

Apesar das tentativas de prescindir da religião e do sagrado, do secularismo e do indiferentismo religioso que emergem com força na atualidade, o cristão sabe que sua identidade depende da sua relação com tudo o que o circunda. Para não perder sua essência, a fé cristã precisa ocupar-se da história, porque nela se realiza a abertura do ser humano para a transcendência.

Nessa convergência entre o visível e o invisível, o humano encontra o sentido, a cura e a salvação de toda sua existência. Ainda que a sociedade moderna esteja prisioneira do consumismo e do utilitarismo, a Igreja há de orientar-se por valores baseados numa sociedade em que a civilização do amor encontre seu espaço e novas oportunidades.

A fé cristã não prega a separação do mundo e nem a plena identificação com as realidades terrestres.  Permanece uma tensão entre o anúncio das alegrias de tudo o que existe por obra de Deus e conforme seu plano e as miopias do tempo que destroem a possibilidade de viver conforme o desejo do Criador. Essa fé não pode ser entendida de modo unilateral, intimista e espiritualista. Tal compreensão reduz o enfoque integral da salvação que Cristo revelou.

O Cristianismo não há de se preocupar somente com as pessoas individualmente, dando-lhes sentido para a existência, mas também e, necessariamente, há de se ocupar com as relações sociais que determinam e legitimam a vida do indivíduo como ser criado para a comunhão e não para a solidão.

Na busca de uma nova racionalidade e novas razões para sonhar com um futuro melhor, a Doutrina Social da Igreja oferece um novo humanismo, cuja inspiração comunional vem da própria Santíssima Trindade. Cada pessoa humana, na sua estrutura de ser e de agir, é um ícone da Trindade, quando o Pai, o Filho e o Espírito Santo são distintos, mas unidos, porque é comunhão infinita de amor. Em sendo a imagem de Deus, cada ser humano é chamado a viver na comunhão, na reciprocidade do dom, na partilha e na comunicação do próprio ser. Tudo em vista do serviço desinteressado ao outro.

A comunidade dos seguidores de Jesus encontra, na fé trinitária, uma casa e escola de comunhão, cuja meta é o Reino de Deus, e a Trindade será tudo em todos. Tal percepção faz de cada pessoa um protagonista de novas relações, vencendo o egoísmo e os interesses privados. A profecia, assim, se expande nos relacionamentos qualificados pelo desejo de comunhão solidária e na preocupação preferencial para com aqueles que têm seus direitos fundamentais negados.

No confronto entre a mensagem evangélica e as vicissitudes históricas, não pode haver neutralidade ou indiferença. Todas as formas de exclusão, injustiça, violência e mentira afetam, profundamente, o ser cristão e, por isso, geram posições e atitudes que desmascaram as forças que desumanizam e se afastam do amor revelado por Jesus.

Não é possível conceber, então, a fé cristã sem o serviço na construção de um mundo justo e fraterno. É evidente que a plena salvação não se esgota na edificação de uma sociedade justa e solidária, pois o destino final de todo ser humano é o Reino de Deus que é transcendente ao mundo visível. Entretanto, esperar o reino vindouro divorciando fé e justiça, Evangelho e vida, seria uma redução perigosa ao próprio conteúdo da fé cristã que não separa o amor a Deus do amor ao próximo.  A comunhão com Deus, portanto, exige uma reorientação total da presença do ser humano no mundo e de sua ação sobre o mundo.

Dom Leomar Antônio Brustolin – Arcebispo Metropolitano de Santa Maria