Nossa revisitação ao Concílio Vaticano II continua, hoje com a análise da constituição dogmática Lumen Gentium (Luz dos Povos). Um dos mais importantes documentos conciliares, reflete sobre a essência da Igreja (origem, membros, constituição, fins…) e deu origem a uma nova imagem e nova consciência eclesial, entendida como “mistério”.
Ao convocar o Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII tinha um objetivo bastante claro: “aggiornamento”, atualização da Igreja diante das questões postas pela sociedade da época. Os trabalhos e documentos deveriam seguir esse itinerário, mas ao final da primeira sessão ainda nenhum dos 72 documentos propostos tinha sido aprovado. João XXIII morreu meses depois, em 3 de junho de 1963, sendo sucedido pelo Papa Paulo VI, que retomou os trabalhos conciliares sob novo impulso. Meses antes, Paulo VI, na época cardeal Montini, tinha se pronunciado, dizendo que o Concílio deveria se ocupar de um único problema: “a Igreja”, isto é, refletir sobre a essência da Igreja. Este seria o novo caminho a seguir.
Do projeto inicial de 72 documentos passou-se para 16, deixando aspectos secundários para intervenções futuras do Papa e das Congregações Pontifícias (os atuais Dicastérios). A constituição sobre a Igreja – Lumen Gentium – torna-se como que a espinha dorsal ou tronco do Concílio e representa, no campo da eclesiologia, uma autêntica revolução. Surge um novo modo de ser e de compreender a Igreja. De um modelo de Igreja como sociedade perfeita passamos agora a uma pluralidade de imagens, complementares entre si e orientadas pela perspectiva do mistério e da Trindade.
Ao contrário do que aconteceu com a constituição Sacrosantum Concilium, houve longa discussão sobre o primeiro texto da Lumen Gentium, sendo feitas cerca de quatro mil emendas. O documento final, votado apenas após cada um dos capítulos ser aprovado individualmente, foi promulgado a 21 de novembro de 1964, recebendo 2151 votos a favor e apenas 5 contra.
É composto por oito capítulos, onde se descrevem diferentes aspectos da Igreja. No primeiro capítulo somos imersos no “mistério da Igreja”: ela é o reino já presente em mistério e cresce pelo poder de Deus; “é o povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). São retomadas diversas imagens que desde as origens do Cristianismo representaram a Igreja: rebanho, lavoura de Deus, edifício, Jerusalém do alto, templo do Espírito e corpo de Cristo com diferentes membros, guiados pela única cabeça: Cristo, que é a Luz dos Povos.
Enquanto o primeiro capítulo considera o corpo eclesial a partir do mistério trinitário, o segundo apresenta o seu desenvolvimento histórico. O novo povo de Deus, uno e universal, é formado por todos os que creem. Na nova aliança, todos são chamados a ir e batizar, segundo a ordem de Cristo em Mt 28,18-20, constituindo assim uma Igreja missionária.
O terceiro e o quarto capítulo descrevem a estrutura orgânica da Igreja. Todos os batizados, fiéis ou pastores, têm a mesma vocação fundamental e são associados à mesma missão. Primeiramente abordam a constituição hierárquica da Igreja, especificando a função dos bispos (pregar o evangelho, governar e santificar o rebanho), presbíteros e diáconos, que estão ao serviço do povo de Deus. A seguir, tratam dos leigos, aos quais “compete por vocação procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG 31). Os leigos, cada vez mais valorizados, são chamados à santidade a partir da sua vida de inserção no mundo. Para tal é sempre atual a necessidade de se investir na formação e participação dos leigos na vida eclesial.
O Concílio pede que entre pastores e fiéis haja uma “comunidade de relações” e um mútuo apoio, pois todos são “chamados à santidade”. Este é o tema do quinto e do sexto capítulo. A missão essencial da Igreja é a santificação: a Igreja é santa e todos na Igreja são chamados à santidade. No coração desta vocação comum a todos, situa-se a vida consagrada. O concílio assinala os conselhos evangélicos como dom divino, consagração ao serviço de Deus. Nos próximos meses retomaremos a reflexão sobre os religiosos, os leigos e o clero separadamente, ao tratar de outros documentos conciliares específicos sobre cada um desses temas.
Nos dois últimos capítulos da Lumen Gentium encontramos a descrição do desenvolvimento escatológico da Igreja e o papel de Maria nesta caminhada, no mistério de Cristo e da Igreja. A Igreja peregrina está em união com a Igreja celeste e só será consumada na glória celeste (LG 48).
A Lumen Gentium é provavelmente o documento mais importante do Concílio Vaticano II, pois fez a Igreja refletir sobre a sua essência, sobre a sua origem e constituição interna. A sua redescoberta como mistério marca o retorno às origens, ao mesmo tempo que se abre a todas as novidades trazidas pelos novos tempos. Para muitos teólogos, a ordem dos capítulos mostra a “revolução copernicana” gerada pelo Concílio. O conceito de “povo” segue o mistério da Igreja, indicando que o povo de Deus não surge por iniciativa humana, mas faz parte do plano de Deus Pai. A constituição hierárquica vem após o “povo de Deus”, simbolizando que os ministérios estão a serviço do corpo eclesial como mistério, a partir de Cristo. Mostra que a comunidade eclesial e a vocação comum são prioritárias face à diversidade de ministérios e vocações; a realidade primeira é o “nós” eclesial no qual a unidade precede a diferença.
A conscientização da Igreja como “mistério”, ligado ao mistério de Cristo e não como sociedade, deu novo rumo e apontou caminhos interessantes que infelizmente ainda não foram totalmente trilhados ao longo destes 60 anos. O magistério do Papa Francisco procura valorizar e implantar ao máximo a visão eclesial e pastoral do Concílio, mas há muito ainda por ser feito. A Igreja ainda tem muito trabalho pela frente. No próximo mês, nossa viagem continua e veremos como todas estas mudanças se refletem no modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras, com a análise da constituição dogmática Dei Verbum – sobre a Revelação.
* Darlei Zanon, religioso paulino