Por que arrepender-se?

Arrepender-se! É uma conduta que parece sempre mais estar em desuso. O demasiado poder com o qual a humanidade está se armando, torna-a praticamente infalível e perfeita. É a criatura se transformando em criador: “eu não me arrependo de nada do que sou e do que vivo!”; “não preciso arrepender-me, pois não errei, não erro, não errarei”; “por que, então, arrepender-se?”

A propósito: Rabi (mestre) Aharon de Karlin – República da Tchéquia foi certa vez o chazan (cantor) para a shacharit (prece da manhã) no Rosh Hashaná (início do Ano Novo judaico). Entretanto, assim que recitou a primeira palavra Hamelech (o Rei), explodiu em lágrimas amargas e foi incapaz de continuar. Mais tarde, os chassidim (piedosos) lhe perguntaram: “Rebe (mestre em yiddish), o que o fez cair em pranto daquele modo?” Explicou Aharon: “Assim que disse a palavra Hamelech (o Rei), lembrei-me de uma história presente na Guemará (comentários e análises rabínicas): “Quando Rabi (mestre) Yochanan Ben Zacai visitou o Imperador Vespaciano, ele saudou-o com as seguintes palavras: “A paz esteja contigo, ó Rei, a paz esteja contigo, ó rei’! Quando Vespaciano, que ainda não tinha sido informado da decisão de ser imperador pelo Senado Romano, ouviu as palavras de saudação do Rabi (mestre) Yochanan Ben Zacai, replicou: “Você merece a morte por uma de duas razões: Se eu não for imperador, como ousa falar-me dessa maneira? E se eu for o imperador, por que não veio ver-me até agora?” “Por isso”, disse Rabi (mestre) Aharon aos chassidim (piedosos) que lhe perguntaram, “quando me referi a Deus como Hamelech (o Rei), fiquei cheio de remorso. Como Deus é o Rei, por que não o procurei arrependido até agora?”

O não-arrepender-se é uma doença existencial fundamental do “eu”. Essa doença leva a considerar que tudo o que eu sou e o que eu vivo é infalível e perfeito. O meu “eu” já não precisa dobrar-se perante ninguém e perante nada. Ao contrário: todos devem dobrar-se diante de meu “eu”. E ai!, se não se dobram, porque então todos estão errados e são mentirosos. Arrepender-se de que se o meu ser e o meu viver é o “correto” e o “perfeito!”

O não-arrepender-se é real quando inicia a idolatria do “eu”: E a idolatria do “eu” tem sua origem, justamente, quando o “eu” perde sua razão de ser e seu sentido de viver: o “eu” é deslocado de “Deus”. Sem cair no simplório, mas procurando ser simples, como se dá o deslocamento do “eu” de “Deus”?

A existência de “Deus” é e sempre será a existência do “eu” do ser humano: o nosso “eu” tem sua origem e seu fim em Deus. Isso, até fica claro, quando constatamos que a palavra “eu” está dentro da palavra “Deus”. Assim, a razão e o sentido do “eu”, só são reais quando ele permanece em Deus.

Em forma didática, podemos assim nos expressar: Basta tirarmos da palavra “Deus” a primeira letra “d” e a última letra “s”, então sobra somente “eu”. O “eu” sem a letra “d”, ele perde a dimensão da “doação” própria de Deus; e sem a letra “s”, perde a dimensão da “solidariedade” própria de Deus”. O eu sem doação (letra “d”) e sem solidariedade (letra “s”) vira um “eu” egoísta. Cessa a obediência e a adoração a Deus e inicia a idolatria do eu.

Por que, então, arrepender-se, se meu “eu” é idolatrado? O meu “eu” é infalível! Os outros erram, não eu! Por que, então, arrepender-se, se o meu “eu” é idolatrado? O meu “eu” é perfeito e verdadeiro! Os outros mentem, não eu!

Voltando ao Rabi (mestre) Aharon, é urgente a humanidade pós-moderna, que sempre mais idolatra o “eu”, novamente colocar o “eu” dentro de “Deus”. O “eu” tem razão e sentido de ser em “Deus”. Assim, não há nenhum motivo para a humanidade não ficar cheia de “remorso” pela sua condição de criatura falível e imperfeita. Ainda é maravilhoso ser capaz de arrepender-se!

Dom Jacinto Bergmann – Arcebispo de Pelotas