A crise do sentido existencial
A pandemia nos trouxe uma policrise. Qual das crises é a maior? Aqui necessitamos de um agudo discernimento. No meu entender, a crise das crises é a crise do sentido existencial. Diante das mortes pela COVID19 que se multiplicam, mesmo com todos os cuidados para fazer-lhe frente, qual é o sentido da vida? Mais ainda, a própria vida tem sentido?
É decisivo nos interrogar pelo sentido da vida que seja capaz de enfrentar e superar todas as crises, e, em especial, a crise do sentido existencial. Existe esse sentido da vida?
Ouso, com a minha convicção, apresentar uma tríplice dimensão do sentido da vida que dá fundamento a tudo: o “sentido-ruah”, o “sentido-verdade” e o “sentido-amor”.
O “sentido-ruah”, biblicamente falando da criação, é o espírito da transcendência, com o qual o gênero humano foi criado. Fomos “moldados de barro, mas recebemos um sopro (ruah) divino”. Tornamo-nos “imagem e semelhança de Deus”. O “sentido-ruah” é o sentido de plenitude! Assim, deixar de lado o espírito da transcendência, que nos dá o “sentido-ruah”, torna-nos apenas “barro”, pois “és pó e só pó serás”. No lugar do espírito da transcendência, toma conta de nós o mero espírito da imanência com toda a sua transitoriedade. Pois, a pandemia está fazendo ver que o espírito da imanência que tomou conta da humanidade está desmoronando: a realidade existencial mostra abismos e destruições. Não é por nada que tantas vidas humanas são tomadas de depressões e suicídios (cf. Gênesis 1e2).
O “sentido-verdade”, também falando biblicamente da criação, é a voz de Deus que necessita ser ouvida. “Ouçam a minha (de Deus) voz: podeis comer de todas as árvores de jardim, mas não da árvore do conhecimento do bem e do mal” – em outras palavras, a verdade que cria “um paraíso”, é de sermos abertos a Deus como criaturas e não tomando posse de Deus Criador. O “sentido-verdade é o sentido de liberdade! Assim, deixar de lado de lado a voz de Deus que nos proporciona o sentido-verdade, significa sermos expulsos do “paraíso”. No lugar da voz de Deus, começa-se a ouvir a “voz da serpente” com a sua mentira e ilusão de sermos “iguais a Deus”. Pois, a pandemia está fazendo perceber que a voz da serpente-mentira está nos desnudando: a realidade existencial torna-se cheia de fracassos e decepções. Não é por nada que se afirma que “a mentira tem pernas curtas!” (cf Gênesis 3e4).
O sentido-amor, ainda falando biblicamente da criação, é a imagem do Deus-Trindade com que todos os seres humanos são forjados. “Não é bom que o ser humano esteja só; do îsh (masculino) tirarei a ishah (feminino) e formarão uma só carne” – em outras palavras, o gênero humano é constituído imagem da comunhão trinitária divina, amor que plenifica. O sentido-amor é o sentido da felicidade! Assim, deixar de lado a imagem do Deus-Trindade que nos dá o sentido-amor, torna-nos egoístas e dominadores. No lugar da imagem do Deus-Trindade começa a imperar a imagem do ego. Pois, a pandemia está fazendo experimentar que o espírito do ego está fracassando: a realidade existencial está cheia de pessoas vazias e infelizes. Não é por nada que vivemos numa convivência de “homo lúpus hominis” (cf. Gênesis 2a4).
Só o “sentido-ruah” traz plenitude, só o “sentido-verdade” traz liberdade, só o “sentido-amor” traz felicidade. Tendo presente esta tríplice dimensão do sentido existencial, a pandemia não consegue nos deixar simplesmente “vazios”, “escravos” e “infelizes”. Ao contrário, a dureza da pandemia nos pode deixar mais “plenos”, mais “livres” e mais “felizes”.
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo de Pelotas