A verdade é violenta?
O relativismo, tão fortemente presente no nosso tempo, é uma filosofia preguiçosa. Cômoda e prática como é, ela não precisa ser profunda. Difundiu-se no mercado cultural a estranha equação: verdade = violência. Essa não é a fórmula mesma do niilismo ativo? A partir daí, quem tem convicções é tido por um “fundamentalista”, um sujeito disposto a passar à violência. Os relativistas aplicam sobretudo essa equação àqueles sistemas que “vivem” de “verdades”, ou seja, de convicções dogmáticas, como são as religiões, especialmente as monoteístas. Daí pensarem que as religiões são, por natureza, fontes de violência.
Contudo, não é a verdade como tal, que é violenta, mas, sim, a arrogância com que vem às vezes acompanhada. Locke (+1704), pioneiro na defesa da tolerância, já viu e afirmou de modo insistente que não é a religião que gera violência, mas a ambição de domínio; a religião aí entrando apenas como subterfúgio ideológico. Quer dizer, a natureza da religião é pacífica, pois a fé é essencialmente um ato de liberdade. É somente o uso da religião, ou melhor, seu abuso, que pode ser violento. Tomar religião por violência é cair na conhecida falácia cum quo ergo propter quis – “com quem, portanto, por que motivo”. O fato é que hoje, as grandes religiões, através de seus porta-vozes legítimos, se declaram publicamente pela paz. Para comprovar esse caráter pacífico da religião, basta evocar os exemplos irretorquíveis dos iniciadores de religião, desde Buda até Jesus de Nazaré. Esses não se permitiram violência alguma, por mais convictos que fossem de suas verdades, antes, em nome dessas mesmas verdades, mostraram um respeito extremo pela humanidade e por sua liberdade. Os mártires cristãos, por seus princípios, preferiram antes morrer que matar. Homens imbuídos de Deus, como Francisco de Assis e como Gandhi, foram “instrumentos da paz universal” e “promotores da filosofia da não-violência ativa”.
A verdade, sem renunciar ao seu “coração intrépido”, como já afirmava o filósofo grego, Parmênides, é, por si mesma, humilde e amorosa, com a luz que a simboliza. De fato, afirma o Concílio Vaticano II: “A verdade não se impõe senão por força da própria verdade, que penetra de modo suave e, ao mesmo tempo, forte nas mentes”. Ao contrário, é o lusco-fusco do relativismo que favorece o avanço da violência, pois, quando falta o logos (razão), subentra a bia (violência).
O relativismo parece inicialmente combinar com a liberdade, mas de fato acaba favorecendo o arbítrio individualista. Parece igualmente promover a tolerância, mas no fim gera não só o indiferentismo, mas até o cinismo, pois termina tolerando o intolerável. De fato, quando se põe abaixo a ideia de verdade objetiva, a liberdade perde suas balizas, ficando aberto o caminho para arbitrariedade e a violência. O pensador Huizinga, no contexto da ascensão dos totalitarismos modernos, que, substituindo a verdade pelas mentiras da ideologia, levaram às barbáries do século XX, prognosticou: “O sintoma mais grave (do nosso tempo) é a indiferença para com a verdade”. Por isso afirmou o papa São João Paulo II: “Verdade e liberdade ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem”.
Nessa reflexão, vale a pena destrinchar a confusão hoje corrente: a que se põe entre verdade e ideologia. Verdade é o que é, e só pode gerar convicções autênticas; ideologia é simulacro da verdade, e gera sempre convicções falsas e alienantes, como ficou claro nas grandes ideologias que ensanguentaram o século XX. Ora, numa mentalidade relativista não há nenhum critério exterior a ela, nem direitos humanos universais e menos ainda mandamentos divinos. Se uma sociedade não consegue se fundar sobre valores não relativos, fica sempre exposta às ameaças de destruição. É como se tivesse injetado em suas próprias veias um vírus letal.
Por fim, no cristianismo, a liberdade pede a verdade, esta pede a caridade, como já tinha percebido Pascal ao dizer: “A verdade fora da caridade não é Deus […] mas um ídolo”. A conexão estreita entre verdade e caridade foi retomada e posta em evidência pelo papa Bento XVI, especialmente na “introdução” de sua encíclica Cáritas in Veritate (2009). Aí o grande teólogo enfatiza que só a verdade dá conteúdo à caridade, que, sem aquela, decai e se perde.
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo de Pelotas