A Via-Sacra – I
Na mensagem de hoje pretendemos continuar a reflexão sobre a piedade popular, como forma de expressão de fé, semelhante ao que já vimos anteriormente em relação ao ângelus e ao rosário ou terço. Assim, nosso tema da presente reflexão será sobre a origem histórica da tradição da Via-Sacra.
Já é do nosso conhecimento que, nos primeiros séculos do cristianismo, o mistério da Paixão-Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, narrado pelos evangelistas, centralizou a vida de oração e meditação da Igreja. É justamente a partir do mistério pascal do Senhor que foi surgindo o Ano Litúrgico da Igreja, com suas celebrações, enriquecidas ao longo da história. Mas a profundidade do mistério pascal nem sempre se tornou tão acessível a todo povo cristão, por motivos diversos. Na Idade Média, por exemplo, o clero e os monges tinham acesso à liturgia oficial e com ela nutriam sua espiritualidade, mas o povo simples, que não entendia mais a língua usada na liturgia (latim) e suas complexas cerimônias, nutria sua piedade com diversas devoções, normalmente paralelas às cerimônias oficiais. Esta realidade se acentuaria até o Concílio Vaticano II (1962-1965). Privado, de certa forma, do alimento da Palavra de Deus e da participação consciente e ativa nas celebrações litúrgicas, o povo recorreu a formas alternativas ou substitutivas. Tentou concentrar sua fé e piedade em torno dos mistérios essenciais da redenção: encarnação, paixão/morte e ressurreição. É neste contexto que se abriram as portas para o surgimento do rosário (terço), do ângelus, da via-sacra e de outras devoções. Estas se difundiram rapidamente, sobretudo através dos pregadores itinerantes (dominicanos e franciscanos), respondendo a uma necessidade pastoral da época, como vimos acima. Outro elemento que favoreceu a difusão das devoções foi a forte tendência à teatralização e repetição na liturgia da época. Dentro deste contexto, os mistérios da encarnação (presépio), da paixão e morte (via-sacra) receberam atenção especial pelo realismo cênico e pelo toque da sensibilidade dos fiéis.
Desta forma, o mundo medieval acolheu o surgimento da Via-Sacra, conhecida e praticada até hoje. Já no séc. XIII existiam muitas dramatizações da paixão, com fins de catequese e contemplação. No século seguinte as dramatizações continuaram e se acentuou sempre mais a meditação. As estações se multiplicaram, chegando até mais de quarenta. Além da inspiração das cenas dos evangelhos foram surgindo também aspectos lendários do caminho da cruz, como as quedas de Jesus e os encontros com Verônica e com Maria Santíssima, a Mãe de Jesus. Somente no século XVII encontraremos, na Espanha, as 14 estações que conhecemos até hoje. Se no início tudo era encenado ao vivo, aos poucos as representações passariam para estátuas e a quadros representativos ou simples cruzes nas paredes das igrejas ou oratórios, como ainda hoje vemos em nossos templos.
Com esta síntese histórico-evolutiva da Via-Sacra, percebemos que o mistério da paixão e morte do Senhor sempre impressionou o Povo de Deus de forma profunda. Na Idade Média, a Semana Santa recebeu inclusive o título de “Semana Dolorosa”, devido ao acento predominantemente emocional em relação à paixão e morte de Jesus Cristo, perdendo-se até a unidade do mistério pascal, como passagem da morte para a ressurreição. Também em nosso tempo, a paixão do Senhor atinge profundamente nossos sentimentos. As encenações da Paixão de Cristo e as Via-Sacras se multiplicam e são bem acolhidas pela piedade popular.
Dom Aloísio Alberto Dilli – Bispo de Santa Cruz do Sul