Alguém que ouça
“É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito do ego.”
(Benveniste)
Em breve surgirá uma nova profissão: alguém será pago para ouvir as pessoas. A constatação está registrada numa das obras recentes de Byung-Chul Han. A informação toma o lugar da comunicação, causando vazio e sentimento de solidão. Em meio a tantos que falam, o ser se cala. Não porque lhe falte o que comunicar, mas pelo fato de não se sentir acolhido, acompanhado, orientado.
Nossa subjetividade é expressa na linguagem, na abertura que se conecta com outro alguém que esteja disposto a algum esforço para compreender-nos. Os muitos silêncios denotam o empobrecimento do diálogo como fonte do vínculo entre os seres humanos. Sabemos que a enunciação postula o hoje, só pode ser dita uma única vez e perde-se, obviamente, no tempo. Entretanto, é graças a ela que nos firmamos como seres e nos posicionamos diante da vida, das circunstâncias, dos valores e contravalores de nossa civilização.
A mensagem está entre quem comunica e quem ouve. Mas sempre há muito mais do que uma mensagem “pragmática”, lançada com alguma intenção. Por vezes, a própria mensagem não passa de desculpa para alcançar o outro, como quem suplica um olhar, um gesto afetuoso de atenção. Aliás, o bem mais precioso da atualidade: a atenção. Ela revela o que ainda permanece em nosso radar, ou seja, o que ainda tem algum significado para nós, o que ainda vale a pena observar.
Numa bela e inspiradora obra, Sumia Sukkar descreve “O menino de Alepo”, um adolescente portador da síndrome de Asperger, que cruza a Síria em busca de seus irmãos em meio à guerra. O livro, escrito de modo criativo nomeia cada capítulo com uma cor. O menino com quatorze anos vai descrevendo em cores os seus sentimentos, sonhos e imaginações. É capaz de ver tudo com olhos de artista, colorindo sua esperança e, ao mesmo tempo, tornando explícita a sua dor diante de um mundo cruel. Adam- o protagonista- não está só. Ele encontra quem ouça a sua dor, permanecendo ao seu lado, com suavidade e generosidade. Pois, para ouvir é necessário ser generoso, dar-se, sair de si, interessar-se pelo outro.
A economia de palavras, o uso tímido de expressões monossilábicas em nossos celulares indicam não apenas o empobrecimento da comunicação entre nós, mas ainda uma prisão compartilhada na solidão gerada pelo século abundante em que vivemos nossa história. “A solidão é uma forma de subjetivação socialmente produzida”, isto é, há algo a mais que dificilmente percebemos em nossa civilização. Sentimo-nos exprimidos até o bagaço, com a obrigação de uma agenda sem nenhum tempo livre, do imperioso sucesso para os outros verem quão bom somos nós. Nossas fragilidades tornaram-se feias e precisamos mostrar a todos somente nosso lado bom, aquele que encanta e causa inveja, mas que nem sempre compõe a nossa totalidade.
Creio que somente quando reencontrarmos a parte que nos falta, aquela mesma na qual nos permitirmos acolher nossos ‘dragões’ e feiuras é que conseguiremos ouvir mais uns aos outros, dando vazão e fazendo jus à nossa condição de seres racionais dotados de inteligência e capazes de afetos que nos permitam nos sentirmos inteiros, mas não autossuficientes. A linguagem está aí como que a dizer-nos que sem aquele “tu”, que é o outro jamais poderei sentir-me pleno. Talvez seja necessário fazer o que Rubem Alves suavemente afirmou: ensinar a escuta. Só ela pode curar-nos da loucura na qual temos transformado nossa vida.
Prof. Dr. Rogério Ferraz de Andrade