Cristão, ide pelo mundo
Por Gabriel Guilherme Frigo[1]
Tem sido cada dia mais frequente encontrarmos afirmações, em muitos âmbitos da sociedade e de modo especial dentro de denominações religiosas e igrejas, do seguinte gênero: “para nos encontrarmos com Deus é preciso que fujamos do mundo”. Este tipo de asseveração tem se tornado comum e muitas vezes acabam sendo usadas como pretexto para uma religiosidade pouco enraizada que beira a um “espiritualismo” desencarnado, no sentido lato da palavra, isto é, a uma identificação da religião como algo que apenas se interessa e se direciona ao plano espiritual. O pensamento de matriz cristão, especialmente católico, tende a se opor a este tipo de concepção espiritualista, de igual modo, afasta-se do chamado materialismo, o seu extremo oposto.
Ao longo dos séculos da era cristã essa problemática também se fez presente, portanto, ela não é puramente atual, contemporânea. Desde o período[2] conhecido como Patrística, passando pela Escolástica e em seguida com a Contrarreforma Católica até o Concílio Vaticano II as interpretações tiveram nuances e perspectivas que tendiam a um ou outro lado, entretanto, a Igreja permaneceu sempre agarrada ao seu eixo central, a saber, o mandato evangélico dado por Nosso Senhor. No Evangelho de Marcos podemos encontrar o seguinte imperativo de Cristo aos seus discípulos: “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Cf. Mc 16, 15).
Interessante notar que o relato segue descrevendo o que os discípulos deverão fazer em nome de Cristo (expulsar demônios, curar doentes, falar nova línguas, pegar em serpentes ou beber veneno sem que estes lhes causem mal), todas ações concretas, palpáveis, realizáveis só por aqueles que estão no mundo concreto, físico, real. E mesmo o que vem logo após, que é o relato de Marcos sobre a Ascenção do Senhor, não tem sequer alguma indicação de que a vida cristã deve se dar fora do mundo. Cristo não nos queria em “bolhas espirituais”, se assim o quisesse, ter-nos-ia elevado aos céus consigo, na Ascenção, para junto do Pai. Todavia, como vimos no relato, Ele nos deixa uma clara missão, viver e pregar seus ensinamentos no mundo e para o mundo. Cristo queria que vivêssemos e santificássemos o mundo para o Pai.
A vida no mundo é própria, sendo assim, de todos aqueles que se propõem ao seguimento de Jesus Cristo, Ele mesmo veio ao mundo, fez-se carne, fez-se matéria, e permaneceu matéria após a Ressurreição. O Concílio Vaticano II (CVII), na Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG), será claríssimo, pelas palavras dos bispos, ao afirmar que é próprio do cristão a vida no mundo. O CVII de modo eminente afirma que “A índole secular é própria e peculiar dos leigos” (LG, n. 31), isto é, viver no mundo e atuar no mundo para a sua transformação, ou melhor, para conduzir todas as coisas (inclusive o mundo) para Deus é tarefa dos cristãos leigos e leigas. Com isso, o CVII não nega a atuação da hierarquia no mundo, mas, mais adiante no mesmo n. 31 e ao longo de todo o documento, explicita quais as funções que cada qual, isto é, que cada membro da Igreja, deve exercer no mundo para o bem e salvação de todos, de todo o corpo eclesial. Porém, é notável que tenhamos em mente as seguintes afirmações sobre os leigos e sua atuação e vida no mundo:
“Aos leigos compete, por vocação própria, buscar o reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, no meio de todas e cada uma das atividades e profissões, e nas circunstâncias ordinárias da vida familiar e social, as quais como que tecem a sua existência. Aí os chama Deus a contribuírem, do interior, à maneira de fermento, para a santificação do mundo, através de sua própria função; e, guiados pelo espírito evangélico e desta forma, a manifestarem Cristo aos outros, principalmente com o testemunho da vida e o fulgor da sua fé, esperança e caridade”. (LG, n. 31).
Qual é, sendo assim, a missão própria do leigo? Segundo os Padres Conciliares, o leigo deve atuar no mundo para a santificação do mundo. De tal forma que, podemos afirmar, o nosso encontro com Deus se dá na nossa atuação no mundo. Encontramos com Deus nas coisas mais ordinárias e comuns de nossa vida. Para alguns Deus se revela e se manifesta de forma extraordinária, como muito bem nos contam os relatos bíblicos e as biografias de muitos santos, entretanto, para outros Deus se manifesta e se revela na sua vida quotidiana, ordinária, no dia a dia. Como disse, certa vez, Santa Tereza de Jesus “em meio as panelas é possível que encontremos Deus”. Ou seja, se afirmamos que para nos encontramos com o Criador do mundo, Deus, precisamos fugir do mundo, estamos caminhando na direção contrária ao projeto evangelizador de Jesus Cristo e a própria ideia basilar da fé judaico-cristã de Deus como único criador de tudo o que existe, estamos negando a bondade da criação e do mundo e fechando nossos olhos para os ensinamentos da Sagrada Escritura e do Magistério Católico.
Nessa perspectiva, podemos concluir com uma citação de C. S. Lewis, um pensador de matriz anglicana, o famoso autor da ficção “As Crônicas de Nárnia”, ao afirmar que:
“Não vale a pena tentar ser mais espiritual que Deus, pois Ele nunca pretendeu que o homem fosse uma criatura puramente espiritual, por isso Ele usa coisas materiais como pão e vinho para incutir nova vida em nós. Podemos até achar que isso é muito rudimentar e pouco espiritual, mas Deus não acha; Ele inventou o ato de comer, Ele gosta da matéria. Foi Ele mesmo quem a inventou” (Cristianismo Puro e Simples, 2017, p. 100).
O cristão, seja ele quem for e/ou esteja ele onde estiver, sempre será e deverá ser portador da mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, contudo, para tanto, ele precisa saber que a sua missão se dá no mundo real e concreto, o mundo que Deus criou. O cristão precisa saber que a matéria é criada e sendo Deus o seu criador (a matéria) é igualmente boa e digna. E, ademais, que se a matéria foi corrompida, ela o foi por ação e deliberação humanas. Por isso, o apelo de Cristo é que saiamos às ruas do mundo e anunciemos o seu Evangelho a toda criatura, Ele quer que vivamos o seu Evangelho no mundo, porque, afinal, só seremos felizes se seguirmos o seus mandamentos, só encontraremos a Deus se formos autênticos discípulos e levarmos uma vida em conformidade com as promessas das bem-aventuranças (Mt 5, 3-12). Deus nos criou para o mundo, porque nos criou seres humanos, partícipes do mundo e, sobretudo, cuidadores da sua criação.
[1] Graduado em Filosofia pela Universidade em Caxias do Sul (UCS), com monografia sobre o pensamento político na obra de Tomás de Aquino, intitulado “Breves elucidações dos conceitos de Civitas e Lex no pensamento político de Tomás de Aquino. Atualmente é mestrando do PPG-Filosofia da mesma universidade, com bolsa CAPES, desenvolvendo uma pesquisa sobre os conceitos justo e justiça em Tomás de Aquino. Tem particular interesse em temas relacionados a filosofia e teologia medieval. E-mail: gabrielfrigo@live.com
[2] Não cabe neste breve texto fazer delimitações mais profundas sobre cada um dos períodos, por isso citaremos apenas de maneira genérica cada um deles.