De “potenciais” a “verdadeiras comunidades “: 53º Dia Mundial das Comunicações

Confesso que a princípio, após uma leitura rápida e superficial da mensagem do Papa para o Dia Mundial das Comunicações deste ano, fiquei um pouco decepcionado, porque parecia ser um conteúdo que não dava continuidade ao caminho feito pela Igreja no que diz respeito à comunicação, especialmente em relação à comunicação digital em rede. Esta última mensagem não parecia dar continuidade às mensagens de Bento XVI e às primeiras mensagens do próprio Papa Francisco, que sempre se expressaram com uma visão positiva da internet, convidando a uma presença ativa nas redes sociais. Naquela primeira leitura, pareceu-me um discurso distante também da visão atual da comunicação que se torna “ambiência”, condição habitativa, e de conceitos como sociedade em rede e onlife, este neologismo que indica a indissociabilidade entre online e offline, a fusão entre analógico e digital, entre presencial e virtual, superando o dualismo digital.

Quando, porém, procurei aprofundar a mensagem e entender qual é a intenção do Papa Francisco, encontrei uma grande coerência entre a presente mensagem e o seu magistério, especialmente no que diz respeito à insistência em uma “Igreja em saída” e na “cultura de encontro”, em uma comunicação humana e relacional ao invés de uma comunicação simplesmente instrumental e técnica. Entendi então que o Papa quer nos conduzir a um salto qualitativo na compressão da comunicação, libertando-a de adjetivos como “social” e “de massa” para retomar seu significado e conceito originais enquanto relação e comunhão.

A primeira coisa a ter em mente para entender a mensagem do Papa é que uma rede social (network community) é algo diferente de uma comunidade. De fato, do anúncio do tema à publicação da mensagem, o título foi alterado para enfatizar essa diferença. No início, o título foi anunciado simplesmente como: “Das ‘community’ às comunidades”. O título atual é: “Das comunidades de redes sociais à comunidade humana”. Tenho certeza que para o Papa o primeiro título era suficiente, porque as redes sociais (community) não são plenamente comunidades. No entanto, para evitar qualquer confusão, é melhor especificar.

Sobre esse tema, recordo uma conferência do grande sociólogo Zygmunt Bauman. Segundo ele, a comunidade precede a pessoa, uma pessoa nasce “dentro” da comunidade, como parte da comunidade; enquanto uma rede social (community) é criada e mantida por duas ações precisas: connecting e disconnecting. A grande atração de uma rede social é a facilidade de conexão, mas sobretudo de desconexão. Não há nenhum sofrimento, nenhuma ruptura ou tristeza ao romper um relacionamento, ou a chamada “amizade”. Basta um simples clique. Coisa muito diferente acontece em uma comunidade presencial. São muitas as consequências, normalmente com dor e sofrimento. Isso significa que em uma rede social não há conexão plena, não existe relação completa, verdadeira comunhão entre as pessoas. O Papa quer que reflitamos sobre esses elementos. Ele quer nos ajudar a entender a lógica por detrás das redes sociais, tão difundidas e envolventes. Uma lógica que nos leva ao encontro de muitas realidades e pessoas, mas que, ao mesmo tempo, pode nos conduzir à solidão, à indiferença, ao preconceito, à exclusão, ao isolamento, ao individualismo, ao cyberbullying, etc.

O foco na comunidade entendida por Francisco como uma rede solidária (não só social) nos conduz imediatamente para a centralidade da escuta e do diálogo no processo comunicativo, conceitos muito estimados pelo Papa, verdadeiros pilares de seu magistério. Os algoritmos usados ​​para mover as redes sociais frequentemente nos levam ao que o filósofo Byung-Chul Han chama de “A expulsão do outro”. Em um pequeno mas denso livro, Han explica os mecanismos que nos levam a aproximarmo-nos cada vez mais do igual e afastarmo-nos do diferente, a ver o “outro” como um inimigo, uma ameaça (por exemplo o migrante-refugiados na Europa hoje). Excluir o outro significa afastar-se do próximo, mas um “eu” estável só nasce em confronto com o “outro”. A excessiva e narcisista referência a si mesmo gera um sentimento de vazio. Assim escreve Han: “Hoje, perdemos cada vez mais a capacidade de ouvir o outro. O crescente foco no ego e a “narcisização” da sociedade tornam sempre mais difícil o exercício da escuta. (…) A escuta convida o outro a falar, abre-lhe espaço para a sua alteridade. A escuta é um espaço de ressonância para a livre expressão do outro. A escuta pode, assim, ser terapêutica. (…) Sem a presença do outro, a comunicação se torna uma simples troca acelerada de informações, não estabelece relações, mas apenas conexões” (Han, p. 31 e 91). A mensagem do Papa nos apresenta essa mesma ideia com outras palavras, afirmando que nos tornamos “pessoas” apenas em confronto e em relação uns com os outros: “voltado para o outro, comprometido com os outros”. Caso contrário, permaneceremos simples “indivíduos”: “para ser eu mesmo, preciso do outro. Só sou verdadeiramente humano, verdadeiramente pessoal, se me relacionar com os outros” (Francisco). Apenas em comunhão e em relação.

Através da mensagem deste ano, o Papa nos alerta para os perigos de uma comunicação simplesmente instrumental, uma simples “conexão” que elimina as verdadeiras “relações”. A verdadeira comunidade existe apenas quando baseada na escuta, no diálogo e nos relacionamentos. Assim enfatiza a mensagem: “Uma comunidade é tanto mais forte quando mais for coesa e solidária, animada por sentimentos de confiança e empenhada em objetivos compartilháveis. Como rede solidária, a comunidade requer a escuta recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da linguagem.” (Francisco)

A rede é uma oportunidade para promover o encontro com os outros”, reconhece o Papa… Mas este não é um processo natural e imediato. Precisamos trabalhar nessa transição das communities (redes sociais) para comunidades, para não deixar que os verdadeiros laços e relacionamentos se deteriorem, como os bytes de um arquivo digital danificado. Não podemos nos limitar às redes sociais, mas a partir delas, isto é, aproveitando as oportunidades e ferramentas que elas nos oferecem, promover verdadeiras comunidades humanas. Promover um salto qualitativo em nossos relacionamentos e comunicação, buscando a complementaridade entre on-line e off-line, entre presencial e virtual, sem esquizofrenia.

Na mensagem para o 53º Dia Mundial das Comunicações, depois de refletir sobre as metáforas da rede e da comunidade, o Papa Francisco nos introduz o conceito de “corpo”, recorrendo a um dos maiores especialistas em comunidades e comunicação: o Apóstolo são Paulo. De fato, as estratégias de Paulo podem nos iluminar muito neste momento histórico, por exemplo a maneira como ele escutava, acolhia e se fazia acolher, seu zelo e autenticidade, multiculturalismo e multimedialidade, sua rede de colaboradores, etc. O Apóstolo Paulo fundou e animou muitas comunidades. Ele criou uma verdadeira rede de comunidades, com uma exemplar complementaridade entre o presencial e o virtual (especialmente através de suas cartas). Ele usou a virtualidade com perfeição para se fazer presente nas comunidades, para ouvi-las, para dialogar com elas e assim manter a sua unidade e a coesão. Ele construiu uma verdadeira e profunda rede de colaboração e de solidariedade. Ao contrário dos algoritmos atuais, são Paulo procurou valorizar a alteridade e a diferença para promover a comunhão em torno de Cristo e do seu Evangelho. A discussão com Pedro em Jerusalém e a sua missão entre os pagãos são exemplos claros disso.

Efésios 4, Romanos 12, 1 Coríntios 12 e diversas outras passagens bíblicas nos lembram que somos muito diferentes uns dos outros, mas que juntos formamos um só corpo, uma comunidade. A consciência das diferenças e de que somos parte de um corpo único nos extrai da nossa autorreferencialidade e nos faz ir ao encontro do outro, a acolher o outro, o diferente… Conduz-nos a novas formas de relacionamento: sem preconceitos, sem limites, sem impor condições… “Leva-nos a refletir sobre a nossa identidade”, como um ser-em-relação. Em geral, estamos mais habituados a “falar” (a lógica do púlpito – de maneira impositiva e hierárquica) aos destinatários do que a “escutá-los” (lógica da ágora/areópago – mais horizontal e sinodal). Daí a importância de empenharmo-nos em uma conversão de atitude para promover momentos e instrumentos que criem laços e favoreçam as relações, ponto de partida para oferecer a “verdade” (o Evangelho e conteúdo de qualidade) às pessoas. As “relações” tornam-se, assim, um elemento chave da prática comunicativa e da “nova” evangelização. Quanto mais conseguirmos nos comunicar entre nós, mais nos aproximaremos, mais nos conheceremos, mais nos amaremos (seguindo o exemplo da Trindade), mais corresponderemos ao plano de Deus para a humanidade.

A rede, nesse sentido, não está em oposição às comunidades. Também as redes sociais digitais são humanas, porque compostas de pessoas e porque favorecem o encontro com e entre pessoas. O grande desafio hoje é transformar essas “potenciais comunidades “ em “verdadeiras comunidades”. É importante lembrar que a origem do termo virtual vem do latim virtus (significa capacidade, força, aquilo que existe como potencialidade), portanto não está em oposição ao “real” mas sim ao “atual” e ao “presencial”.

Isto para dizer que uma comunidade virtual tem o potencial para se tornar uma comunidade presencial, este é o seu propósito. Na mensagem deste ano o Papa nos convida e provoca a sermos os promotores, os agentes, os protagonistas desta mudança ou evolução: “O panorama atual convida-nos a investir nas relações, a afirmar – também na rede e através da rede – o caráter interpessoal da nossa humanidade.” Francisco nos convida a habitar (e não apenas utilizar) a rede com autenticidade e coerência, procurando transformar as redes sociais em verdadeiras comunidades relacionais humanas, e não apenas utilizando-as de maneira técnico-instrumental. Isso significa deixar a “rede de fios” para promover a “rede de pessoas”. Significa construir novas formas de comunidade em rede. Enfim, a mensagem nos convida a deixarmo-nos guiar pelo “amém”, que gera comunhão e unidade, e não pelo “like”, que leva à competição e ao narcisismo.

 

Fr. Darlei Zanon, religioso paulino