Dignitatis Humanae e Nostra Aetate: Unidade Religiosa e Respeito às Diferenças

Em meio a uma sociedade cada vez mais pluralista e sincrética, parece-nos essencial falar em liberdade religiosa e em diálogo interreligioso. Mas nem sempre isso acontece de forma natural e pacífica, basta vermos conflitos recentes pelo mundo a fora. Muitos passos já foram dados, mas é sempre bom recordar o ponto de partida e fundamento deste processo, que está no Concílio Vaticano II.

Ao longo dos últimos meses, apresentamos nesta secção as quatro constituições dogmáticas do Vaticano II. Elas são como que uma árvore, como bem explicou dom Manuel de Almeida Trindade: «o tronco é a Igreja na sua constituição essencial: luz das gentes (Lumen Gentium). As raízes são a Sagrada Escritura (fonte constitutiva) e as Tradições (fonte interpretativa): Dei Verbum. A seiva é a Oração (de modo particular a Liturgia) que mantém vivo o tronco: Sacrosantum Concilium. A casca é o contato da Igreja com o mundo, do qual ela deve constituir a alegria e a esperança (Gaudium et Spes).» Hoje entramos num novo espaço, as declarações e os decretos, que tratam de temas complementares, são como que ramificações das constituições. Vamos iniciar conhecendo os documentos sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e sobre o diálogo interreligioso (Nostra Aetate), duas das três declarações do Concílio. No próximo mês analisaremos a terceira, sobre a educação cristã (Gravissimun Educationis).

Dignitatis Humanae foi um dos textos mais discutidos e alterados do Vaticano II. Isso se deve ao delicado tema que aborda, mas principalmente à grande transformação de mentalidade que trouxe. Ele contribuiu de forma decisiva para a mudança de atitude e superação de uma visão redutiva do magistério com respeito às outras tradições religiosas, passando-se a ver o lado positivo das religiões não cristãs. Representa a revisão da teoria de exclusividade da verdade que serviu para justificar séculos de intolerância. Os princípios expostos nesse documento constituem um pressuposto essencial e estruturante para a dinâmica ecumênica e interreligiosa concretizada pela Igreja nos anos posteriores.

O primeiro capítulo da constituição trata de aspectos gerais da liberdade religiosa. Logo no segundo parágrafo afirma: «o Concílio declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa». Cada um tem o direito de procurar a verdade em matéria religiosa de modo a formar juízos de consciência retos e verdadeiros. Nenhum indivíduo ou comunidade religiosa deve ser coagido por qualquer pessoa ou grupo. Em muitos países vemos estes direitos desrespeitados, quer seja por parte dos cristãos, quer por parte de outras religiões. O documento chama a atenção para o papel do governo civil na garantia desses direitos. Ele deve garantir e promover a liberdade religiosa, que está também associada à responsabilidade social, segundo DH 8.

No segundo capítulo, a temática da liberdade religiosa é abordada à luz da Revelação. Vemos expresso aí o princípio teológico de que a resposta à revelação é sempre um ato livre e pessoal. A fé é esta resposta, e por isso pode ter muitas variantes. Enfatiza, porém, que a Igreja Católica segue o caminho de Cristo na promoção da paz e da liberdade e que os cristãos devem dar exemplo de respeito à liberdade religiosa.

Assim como as constituições analisadas anteriormente mostram uma grande abertura e diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo, aqui vemos a abertura ao diálogo com as outras religiões, que fica ainda mais claro nos decretos Orietalium Ecclesiarum e Unitatis Redintegratio, sobre o ecumenismo (que veremos nos próximos meses) e na Nostrae Aetate, sobre a relação com as religiões não cristãs. Este é o menor dos documentos do Vaticano II, com apenas cinco números, e foi aprovado com 1763 votos a favor, 250 contra e 10 nulos.

A Nostrae Aetate inicia com a reflexão de que todos os povos e em todos os tempos há uma busca da Divindade Suprema, o Absoluto, e todas as religiões têm algo em comum, pois buscam respostas para questões existenciais da condição humana: Que é o homem? Qual é o sentido e o fim da vida? Qual é o caminho para chegar à felicidade? E assim por diante.

Depois segue com uma breve descrição do hinduísmo (NA 2), do budismo (NA 2), do islamismo (NA 3) e do judaísmo (NA 4). A nova relação com os judeus foi decisiva para a origem da presente declaração. O teólogo Faustino Teixeira afirma que o encontro de João XXIII com Jules Isaac, historiador judeu, em junho de 1960, foi um momento importante na gênese do documento. «Isaac sensibilizara-se com o gesto de João XXIII de abolir em 1959 as fórmulas negativas presentes no ritual romano sobre os judeus e muçulmanos, até então definidos como “pérfidos”. Até o memorável encontro não estava nos planos do papa a previsão de uma reflexão do concílio sobre o tema do judaísmo e do antissemitismo e muito menos de um documento sobre as outras religiões.»

A conclusão da Nostrae Aetate convoca a todos para promovermos o diálogo fraterno e o mútuo conhecimento e estima; e afirma que a Igreja reprova qualquer tipo de discriminação e perseguição. Introduziu uma significativa mudança na forma de tratamento, passando a destacar-se o respeito e a acolhida. Esse documento carece de bases doutrinais e perspectivas teológicas mais aprofundadas, mas se adequa perfeitamente ao espírito pastoral do Concílio, traduzindo uma visão mais aberta sobre o mundo e mais otimista com respeito à dinâmica de salvação. Nesse sentido, conseguiu promover uma mudança de perspectiva, conduzindo à compreensão, à estima, ao diálogo e à mútua cooperação.

Até o Concílio era muito forte a visão de que “fora da Igreja não há salvação”. O Vaticano II não nega esta afirmação, mas também não a enfatiza. Mantendo a convicção da centralidade de Cristo na História da Salvação, reconhece o valor e os elementos positivos de cada religião. Antes via-se as outras religiões como obstáculo a ser superado. Agora abre-se espaço ao diálogo, adoptando a perspectiva da praeparatio evangélica, ou seja, no plano da pedagogia divina as outras religiões são situadas como preparação ao Evangelho. Há no documento muita cautela: não assume o valor salvífico das outras religiões, mas respeita a parcela de verdade presente em cada uma delas.

Os documentos conciliares foram o ponto de partida necessário para promover o diálogo e o respeito cada vez mais necessários e exigidos no mundo atual, composto por cerca de 2,4 bilhões de cristãos, 1,9 bilhão de muçulmanos, 1,15 bilhão de hindus, 521 milhões de budistas, 30 milhões de siques e 15 milhões de espírita e outros 15 milhões judeus, além de milhões de seguidores de religiões tradicionais chinesas e outras religiões étnicas. Para nos motivarmos ainda mais ao diálogo, nunca é demais enfatizar os esforços que o Papa Francisco tem feito para estreitar laços com todos os povos e religiões, participando de diversos encontros e eventos. Além das diversas mensagens em que trata do tema do diálogo e da paz entre as religiões, a sua encíclica Fratelli Tutti estabelece o diálogo e o respeito à diversidade como pressupostos para uma amizade social verdadeira que seja capaz de gerar a fraternidade e a paz. Se ainda não leu, vale a pena dedicar algumas horas ao aprofundamento do conteúdo deste documento sobre a fraternidade e a amizade social.

*Fr. Darlei Zanon, religioso paulino