Interesse pela família
Dom Dadeus Grings – Arcebispo emérito da Arquidiocese de Porto Alegre
O século XIX ficou conhecido como o Século das Luzes. Foi o século do Iluminismo, do Racionalismo, do surgimento das grandes ideologias, dos grandes sistemas filosóficos e sociais; o século do otimismo, das ciências, da objetividade. O homem toma pose do universo. Subjuga-o à sua inteligência e vontade. É o Século do Positivismo de Comte, do Comunismo de Marx, do Idealismo de Hegel.
Sucedeu-lhe o século XX, definido, em contraposição, como o século das trevas, do desespero, da angústia, do pessimismo, do esfacelamento das estruturas. Registra duas guerras mundiais, vários holocaustos. Opõe-se ferrenhamente à Razão, tão divinizada no século XIX. Prevalece, como Filosofia, o Existencialismo, a subjetividade, a relatividade, a precariedade, a falta de sentido de tudo. Por diversas vezes se preconizou o fim do mundo. Fechou-se o futuro. O presente se restringe ao aqui e agora. Volta o aforismo romano: “carpe diem”.
Quando se chega ao fundo do poço e se tem a impressão de que tudo está perdido, começam a surgir reações. Na perspectiva cristã registramos o grande movimento ecumênico. É o diálogo que tenta romper as barreiras que nos separavam. O século XX pode ser definido também como o século da Igreja. Culmina no grande esforço de renovação do Concílio Vaticano II. Mostra que nem tudo está perdido. Acende-se uma luz de esperança e de graça, em meio às trevas e ao desespero. Surge a grande reflexão sobre a Igreja, como Povo de Deus, como Corpo Místico, como Luz para .os Povos. O Papa Francisco, no século XX, registrando a mais profunda crise da família, manda olhar para o todo. Garante ser maior que a soma das partes. É o holismo a esclarecer as partes e lhes dar sentido transcendente.
Neste contexto aparece mais claramente a natureza humana como ponto de referência. Não se trata apenas de indivíduos, que se fecham sobre sua subjetividade. Aprofundando a crise da família, o homem sente seu vazio. Dá-se conta de que não é indivíduo, mas família. Sem família sente-se perdido, marginalizado, esvaziado de si
mesmo e de sua natureza. Como chegou a percebê-lo? O século XX, registrando a mais profunda crise da família, retrata, radicalmente, o desafio da vida humana. Solapara-lhe o fundamento. Daí a necessidade de uma reconstrução. O Papa S. João Paulo II garante que o futuro da humanidade – e podemos acrescentar, o futuro do Cristianismo – passa pela família.
Não houve século em que se estudasse, escrevesse e debatesse mais sobre a Igreja e a Família que no século XX. Escrevi um alentado tratado sobre “Minha Querida Igreja”. Agora lanço outro estudo sobre a Família, definindo-a como “A Boa Nova” para o nosso tempo, depois de, no século XX, ter escrito um livro sobre “O Mistério do Matrimônio”.
Que houve para que, no século XX, a Família entrasse numa crise tão profunda? No meu estudo “O Mistério do Matrimônio” elenco sete fatores preponderantes: 1. a industrialização do século XVIII concentrou a mão de obra, dissociando vida em família e trabalho; 2. a urbanização provocou uma acentuada mobilidade geográfica, arrancando o homem da roça e da convivência do lar para urbanizá-lo; 3. a aceleração demográfica, pelo medo de uma superpopulação, forçou a diminuição da natalidade; 4. a terciarização, numa acelerada mobilidade profissional, deu destaque ao setor terciário, da movimentação de bens; 5. a elevação do nível de vida tornou a vida humana mais cara, projetando uma mobilidade social; 6. o trabalho profissional da mulher transformou seu status e sua função social; 7. o bombardeio diário e ininterrupto dos potentes meios de comunicação prognosticaram um novo modelo de família.
Como conseqüência realizaram-se 13 transformações significativas na estrutura da família: 1.aumento do divórcio; 2. declínio da autoridade dos pais; 3. aumento do trabalho profissional feminino; 4. aumento das relações sexuais extra-conjugais; 5. individualismo e liberdade dos membros dentro da família e da sociedade; 6. drástica redução da dimensão familiar; 7. transferência das funções educativas, recreativas, produtivas e religiosas para outras instâncias; 8. difusão do controle da natalidade; 9. alienação dos filhos em relação aos pais idosos; 10. intensa mobilidade, levando os membros da família a se dispersarem, muito cedo, fora de casa; 11. mentalidade laicista, com o declínio da religiosidade; 12. ênfase ao amor romântico e separação dos bens materiais do âmbito familiar; 13. interesse exacerbado pelo sexo.
PARA REFLETIR
- Por que o século XX suscitou interesse pela família?
- Como a crise da família reflete na vida das pessoas?
- Por que a família entrou em crise no século XX?