Kiss: Da dor ao amor
No dia 27 de janeiro de 2022, recordamos os dez anos do incêndio na boate KISS, em Santa Maria, que ceifou a vida de 242 jovens. Dentre as muitas e razoáveis formas de encarar um fato tão grave, destaca-se a espiritualidade. Partindo da dor indizível dos olhos que viram e jamais esquecerão aquelas imagens, pode-se pensar em transfigurar aquela realidade: da dor ao amor.
Ninguém pode atenuar o sofrimento dos familiares. A busca por justiça e paz e por tudo o que possa acalmar o coração humano tem seu valor e deve ser respeitado. Mas podemos avançar mais. Enxergar um horizonte de esperança que console que foi abatido pelas perdas. Aqueles nomes não podem ser esquecidos. Cada um deles significa muito para quem pranteia os mortos.
Muitas explicações religiosas podem ser oferecidas diante do fato. Aos cristãos cabe silenciar e contemplar com o olhar de Maria, mãe do “Crucificado”, o que aconteceu naquela madrugada de janeiro de 2013. Na vida ocorrem fatos que nunca explicaremos, mas que precisamos acolher, meditar, não esquecer e ressignificar, para que a memória dos que partiram seja sempre um sinal de esperança de que a vida é mais forte do que a morte.
Para o cristão o sofrimento humano tem como contraponto uma presença redentora na loucura e no escândalo da Cruz do Filho de Deus feito homem. Ele não veio para eliminar o mal ou dar alguma explicação sobre o sofrimento. Ele veio sofrer conosco, em nós e por nós. A ordem é restabelecida pela comunhão do amor que redime toda aflição humana.
Com diferentes crenças, o ser humano, em geral, percebe que a vida não se restringe a este tempo na Terra. Há uma vida plena de sentido e eterna que nos espera. Caso contrário, a existência humana neste Planeta seria um absurdo: vivemos entre nascimentos e velórios, entre alegrias e angústias, entre verdades e mentiras. Saber olhar para além das aparências, inclusive da dor mais dilacerante, tem um efeito libertador e restaurador.
Ressignificar a morte é uma tarefa para todos, como nos recorda o texto da Gaudium et Spes (GS, 18): “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto mais alto. O homem não se aflige somente pela dor e pela progressiva dissolução do corpo, mas também, e até mais, pelo temor da perpétua extinção. Mas, por intuito do seu coração, julga corretamente quando afasta com horror e repele a ruína total e o fim definitivo da sua pessoa. A semente de eternidade que produz dentro de si, sendo irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte. Todas as conquistas da técnica, embora muito úteis, não conseguem acalmar a ansiedade do homem, pois o prolongamento da longevidade biológica não consegue satisfazer o desejo duma vida ulterior, que, inelutavelmente, existe em seu coração.”
Fazer memória dos dez anos daquele janeiro de 2013, portanto, é, também (e eu diria prioritariamente) rezar pelos falecidos. Neles há uma semente de eternidade que não pode ser esquecida pela dor aguda da perda. Neles havia um desejo infinito de vida abundante que se realiza somente pela vontade do Criador que é Senhor e doador da vida.
Por isso, convido todos os familiares, os amigos e os que atuaram nesta cidade para socorrer as vítimas, para rezarmos juntos. Celebraremos a Santa Missa no dia 28 de janeiro, às 20 horas, na Basílica da Medianeira de Todas as Graças. Todos somos convidados a unir corações e vozes para suplicar ao Senhor pelos que partira e pelos que ficaram. Rezar é colocar o nosso coração ferido por tantas perguntas, no coração de Deus que está sempre junto de quem sofre. Ele não responde a todos os nossos porquês. Ele subverte a questão respondendo com seu abraço que acalma, consola e sussurra em nosso coração: “Tenha paz! Eu estou aqui, contigo!”
Dom Leomar Antônio Brustolin – Arcebispo Metropolitano de Santa Maria