Na quaresma, aprender a ajoelhar!
A quaresma, no fundo, é alcançar a graça de saber ajoelhar. Romano Guardini escreveu que a estatura erguida é própria dos seres humanos e a distingue de outros seres vivos. No entanto, quando nos colocamos de joelhos, abraçamos a relação com o outro e abrimos mão da dominação, do poder, da chefia… Renunciar ao permanecer erguido é “entregar-se” aos outros e ao Outro.
A grande mística judia, Etty Hilesum, assassinada aos 29 anos num campo de concentração, contou em seu diário que precisou aprender a ajoelhar-se. A relação que ela foi estabelecendo com Deus, acompanhada da Bíblia e das poesias de Rilke, bem como dos desafios do seu orientador espiritual, é de profunda intimidade. Em meio ao caos da morte e da tortura ela escreveu: “Ainda me restam duas mãos juntas e um joelho dobrado”.
Etty se apresentou como a menina que aprendeu com dificuldade a se ajoelhar. Isso mudou a forma com que ela viveu até a morte prematura. Precisamente foi essa a pedagogia que fez com que ela superasse o ódio e abraçasse a narrativa da não-violência. E ela repetia: é preciso ajoelhar-se.
Com a quaresma assumimos a tarefa de rezar mais, de entrar na intimidade com o Senhor através de uma relação de abertura e de hospitalidade. Para isso, temos de superar nossa auto-suficiência e nossa autoreferencialidade. Deus é o Outro que precisamos alcançar, é o Mistério Maior. Ao aprender a ajoelhar, ao abrirmos mão dos nossos supostos poderios, damos sentido também ao jejum e a caridade. Ambos exigem aprendizado e coerência. Jejuar é abraçar o autocontrole. Ser caridoso é olhar na direção da mão que se estende e descentralizar nossa vida.
No Evangelho de Lucas, capítulo 18, Jesus contou uma parábola em que havia dois homens rezando no Templo. Um deles, fariseu, rezava de pé e falava de como tinha sido um homem bom durante a vida. O outro, publicano, sem conseguir erguer os olhos, suplicava compaixão. O texto não diz que o publicano se ajoelhou, mas seu movimento corporal de “não erguer os olhos” revelava o seu coração aberto. O texto conclui afirmando que esse último voltou para casa justificado, enquanto o fariseu não. Dizendo de outro jeito, ser justificado é receber a graça de viver uma intimidade, uma relação com Deus.
Ajoelhar é o movimento para tatear Deus. Na carta aos Filipenses, em belíssimo hino, Deus “se abaixou, se humilhou”. Esse é o lugar do encontro. Nessa quaresma, peçamos a graça de saber ajoelhar-se, mesmo nas circunstâncias terríveis que vivemos. Concluo com uma oração da Etty, em meio ao campo de concentração, deixada em seu diário:
“Meu Deus, toma-me pela mão, vou segui-lo como uma boa menina, não vou opor muita resistência. Não me afastarei de nenhuma das coisas que me acontecerem nesta vida, tentarei aceitar tudo da melhor maneira. Gosto do aconchego e da segurança, mas não vou me rebelar se for a minha vez de estar no frio, enquanto segurar a minha mão, eu vou a qualquer lugar e tentarei não ter medo. E onde quer que eu esteja, procurarei irradiar um pouco desse amor, desse amor verdadeiro pelos homens que eu carrego dentro de mim […] Uma vez que se começa a caminhar com Deus, simplesmente se continua a caminhar e a vida se transforma em um único e longo passeio.” .
Pe. Maicon A. Malacarne – Diocese de Erexim