O bem viver e a criação
Um ponto fundamental da compreensão humana do “bem viver”, tema de nossa 43ª Romaria da Terra, é o lugar do ser humano no universo. “Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. […] Esquecemo-nos que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7)” (Francisco, Laudato Sí, n. 2).
A carta do Papa Francisco sobre “o cuidado da casa comum” faz uma diferenciação importante. A ideia da “família universal” diz que “nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal: uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS, n. 89). Para quem crê, tudo o que existe não é produto do acaso, mas obra de Deus Criador. Sim, o universo, com tudo o que o compõe é uma criação divina. Somos suas criaturas. Proviemos da mesma fonte. Temos diferentes significações, mas todas elas importantes para que a criação possa existir. A fala de que o universo não tem a ver com Deus é uma falsificação antropológica e de fé. Sim, tudo tem a ver com Deus e a ciência vai nos ajudando a compreender ainda mais profundamente o significado desta relação intrínseca. “Tudo está interligado” (LS n. 91), por isso, a preocupação com o ser humano deve abarcar a todos, bem como o meio ambiente e uma preocupação com os problemas da sociedade. Nossa preocupação pelas árvores deve nos mover da mesma maneira como nos ocupamos pela fome no mundo, os migrantes e o combate do aborto. São Francisco de Assis é modelo para nós, ao chamar de “irmão” e “irmã”, o sol, a lua, o rio e a terra. Antes da diferenciação, temos a necessária igualdade fundamental: criaturas de Deus.
A questão principal é saber o lugar que Deus deixou para o ser humano, no relato da criação. “Deus disse: Façamos um ser humano, à nossa imagem e segundo nossa semelhança” (Gn 1,26). A compreensão desta fundamental diferenciação do ser humano na criação foi interpretada como o direito de poder “submeter” e “dominar” a criação (cf. Gn 1,28). Esta superioridade não significa o colocar-se num nível superior, guiados unicamente pelo “interesse próprio”. No capítulo segundo do Gênesis encontramos a criação do ser humano com outra perspectiva: criado do “pó do solo”, Deus soprou-lhe nas narinas e o homem tornou-se um ser vivo. A criação de Deus é descrita como um “jardim” e “o Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivá-lo e guardá-lo” (Gn 2, 15). Desta errônea compreensão do lugar do ser humano na criação, surge a perspectiva que está presente hoje: o antropocentrismo, de cunho tecnocrático. O ser humano foi vendo que é o senhor absoluto de tudo, inclusive substituindo o próprio Criador. Sem Deus, o ser humano não consegue sentir-se parte da criação e não consegue ver os outros como irmãos e irmãs. Perdeu-se a noção da destinação universal dos bens e da inviolável dignidade de todo ser criado, pequeno ou grande, rico ou pobre, branco ou negro. O Papa nos ajudou a compreender que esta postura “provoca ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social” (LS, n. 122). A tecnologia não pode ser vista como neutra, mas carregada de valores, com princípios e consequências.
A crise do “bem viver” tem sua origem no ser humano e depende dele realizar opções claras para um progresso mais saudável, mais humano e integral. O Papa nos diz: “Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (LS, n. 111).
Dom Adelar Baruffi – Bispo Diocesano de Cruz Alta