O cuidado com o feminino

A celebração do Dia Internacional da Mulher convida à reflexão sobre a dignidade e a beleza do feminino. Suscita também questões que o gênero literário busca ilustrar.

“Conta-se que quando Deus decidiu criar a mulher, descobriu que havia esgotado todos os materiais sólidos no homem. Depois de profunda meditação, fez o seguinte: tomou a redondeza da Lua, as curvas suaves das ondas, a terna aderência de uma planta trepadeira, o trêmulo movimento das folhas, a esbelteza da palmeira, a cor delicada das flores, o olhar amoroso da corça, a alegria do raio de sol e as gotas de pranto das nuvens, a inconstância do vento, a modéstia do lírio e a vaidade do pavão, a suavidade da pluma e a dureza do diamante, a doçura da pomba e a crueldade do tigre, o ardor do fogo e a frieza da neve. Com esses ingredientes criou a mulher e deu-a ao homem.
Depois de uma semana, o homem Lhe disse: — “Senhor, a criatura que me destes me faz infeliz: quer toda a minha atenção, nunca me deixa sozinho, fala sem parar, chora sem motivo, diverte-se fazendo-me sofrer e estou vindo devolvê-la porque não posso viver com ela!” — “Está bem”, respondeu Deus, e tomou a mulher de volta. Passou outra semana, o homem voltou e disse: — “Senhor, estou muito solitário desde que devolvi a criatura que fizestes para mim. Ela cantava e brincava ao meu lado, olhava-me com ternura e seu olhar era uma carícia, ria e seu riso era música, era formosa e suave ao tato. Devolvei-a, porque não posso viver sem ela!” —”Está bem”, disse o Criador. Mas, três dias depois, o homem voltou e disse: —”Senhor, eu não consigo explicar, mas depois desta minha experiência com esta criatura, cheguei à conclusão que ela me causa mais problemas do que prazer. Peço-lhe, tomá-la de novo! Não consigo viver com ela!” O Criador respondeu: — “Mas também não pode viver sem ela.” O homem desesperado disse: —”Como é que eu vou fazer? Não consigo viver com ela e não consigo viver sem ela.” — “Achei que, com as tentativas, você já tivesse descoberto, respondeu Deus. Amor é um sentimento a ser aprendido: é tensão e satisfação. É desejo e hostilidade. É alegria e dor. Um não existe sem o outro. A felicidade é apenas uma parte integrante do amor. Isto é o que deve ser aprendido. O sofrimento também pertence ao amor. Este é o grande mistério do amor. A sua própria beleza e o seu próprio fardo. Em todo o esforço que se realiza para o aprendizado do amor é preciso considerar sempre a doação e o sacrifício ao lado da satisfação e da alegria. A pessoa terá sempre que abdicar alguma coisa para possuir ou ganhar uma outra coisa. Terá que desembolsar algo para obter um bem maior e melhor para sua felicidade. É como plantar uma árvore frente a uma janela. Ganha sombra, mas perde uma parte da paisagem. Troca o silêncio pelo gorjeio da passarada ao amanhecer. É preciso considerar tudo isto quando nos dispomos a enfrentar o aprendizado do amor.”

O amor, fundamento de qualquer relação humana, é ainda mais necessário na relação da sociedade atual com as mulheres, quando constatamos que ainda não há equidade em diversos espaços, e que a violência fere e tira a vida de tantas delas.

A Campanha da Fraternidade deste ano, cujo tema é “Fraternidade e vida: dom e compromisso”, reserva espaço especial para o tema do feminicídio, e nos lembra que ainda será necessário empreender muitos esforços para que realmente a vida esteja em primeiro lugar.

Em 2017, conforme o documento, a cada dez feminicídios registrados em 23 países, quatro ocorrem no Brasil. Segundo a Agência Senado, “naquele ano, pelo menos 2.795 mulheres foram assassinadas, das quais 1.133 no Brasil. Já o Atlas da Violência 2018, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou uma possível relação entre machismo e racismo: a taxa de assassinatos de mulheres negras cresceu 15,4% na década encerrada em 2016. Ao todo, a média nacional, no período, foi de 4,5 assassinatos a cada 100 mil mulheres, sendo que a de mulheres negras foi de 5,3 e a de mulheres não negras foi de 3,1.

De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Rio Grande do Sul, o número de feminicídios triplicou em janeiro deste ano no Estado. Foram 10 mortes de mulheres por questões de gênero no último mês, contra três em janeiro de 2019. Em 91,7% das cidades do país, não há delegacia de atendimento à mulher e em 90,3% das cidades do país não há nenhum tipo de serviço especializado no atendimento à vítima de violência sexual.

Como nos faz refletir a sabedoria bíblia, a relação de amor entre homem e mulher é obra de Deus. No dia dedicado à reflexão do feminino em nosso meio, cabe a toda pessoa de boa vontade a revisão de como tem valorizado a vida em todas as suas expressões.

Dom Jaime Spengler, arcebispo metropolitano de Porto Alegre e primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).