O enigma do mal no mundo

Há muitas abordagens possíveis sobre a origem do mal. A abordagem religiosa é uma das que mais produziu reflexões ao longo dos tempos.

Na tradição do Livro do Gênesis, a origem do mal é entendida como surpresa, como o que não foi previsto. Na Teologia da Criação, o mal não foi pensado e, por isso, não foi criado. É por essa razão que o mal é desprovido de sentido, é um irracional absoluto. O crente apenas pode dizer que o mal apareceu. Esse é um fato inegável, mesmo que ele não tenha sido pensado.

Para o Livro do Gênesis o mal tem uma origem. Ele vem de um desconhecido representado pela serpente, símbolo da religião Cananeia do tempo da redação do Livro das origens. A serpente foi, muitas vezes, identificada com o demônio, o rebelde, o acusador, o divisor, o adversário. A primeira constatação que o relato permite ver é que o mal não vem de Deus nem da criatura humana.

O simbolismo da serpente, contudo, não pode ser tomado como uniforme. É complexa a utilização do animal para representar tanto o mal quanto a vida. A serpente é uma figura demoníaca em muitas religiões do mundo, especialmente na mitologia da Pérsia, da Mesopotâmia, de Roma, do Egito e da Grécia. Mas o animal, paradoxalmente, carrega também o simbolismo da vida, da fertilidade, da saúde e da cura. Recorde-se como Moisés mandou fabricar uma serpente de bronze para livrar os israelitas do castigo do deserto ao adorarem o bezerro de ouro. (Nm 21, 4s). Quem olhasse para a serpente levantada na haste, apesar da picada das cobras, não morreria. A medicina apropriou-se do simbolismo da serpente para seu emblema, justamente pelo caráter sanativo que ela evoca a partir do emblema do deus grego curador: Esculápio.

A ação da serpente demoníaca é uma surpresa. No meio da Criação boa e harmoniosa, ela aparece sem se afirmar de onde vem. Ela está fora do plano criador, fora da lógica. Essa presença adversária não evoca uma culpabilidade para Deus e nem para o ser humano, de tal forma que, segundo o Livro do Gênesis, a única responsabilidade pela entrada do mal nesse contexto é da serpente. Ela entra em cena de forma acidental e provoca desgraça.

O mal, portanto, é concebido como um acidente, uma desgraça que surpreende o ser humano das origens e é inesperado no projeto da Criação. Nesse sentido, biblicamente, não se sustenta uma reflexão que procure identificar culpados e criadores para a presença do mal no mundo.

Olhar o mal como acidente, como irracionalidade permite inocentar Deus e o humano do problema da responsabilidade do mal. Tal perspectiva, contudo, não isenta Deus e o ser humano de questionarem sobre as possibilidades de se livrarem do mal. Longe de explicar a gênese do mal, todo pensamento bíblico destacará a importância de anular a força destruidora sobre a Criação divina. A grande questão a ser enfrentada pelo homem bíblico não é a origem do mal, mas sua superação.

Para enfrentar e vencer o mal, é preciso, conforme o pensamento judaico-cristão, constatar a perplexidade e a estranheza dessa entrada no meio da Criação. Disso deriva que é muito difícil compreender e explicar a origem do mal, pois pela irracionalidade que ele representa, sua explicação se fundamenta sobre um enigma que sempre causa perplexidade e paralisa as forças que tendem a classificá-lo e conceituá-lo.

Dom Leomar Antônio Brustolin – Arcebispo Metropolitano de Santa Maria e Presidente do Regional Sul 3