O que é mesmo o Natal
Das minhas leituras de Romano Guardini, compartilho uma mensagem de Natal que pode nos ajudar a refletir diante de tempos complexos e cenários que reclamam de um novo horizonte para viver.
Chega o Natal, não apenas para aqueles que são cristãos, mas também para aqueles que não o são. Todos sentem-se desafiados pelas palavras de Jesus, pela sua seriedade e intensidade. Até porque é justamente do enfraquecimento das palavras que devemos partir. Cada vez mais palavras grandiosas se misturam e se consomem, perdendo seu significado original. Os próprios cristãos há muito perderam o significado do Natal. O acontecimento que esse dia evoca está diminuído e mascarado por outros aspectos bem pobres. Na melhor das hipóteses remete a algo sentimental, na pior, à lógica mercantil de compras e gastos.
Certamente a referência à intimidade familiar, a distribuição de presentes, o brilho das luzes conserva a sua carga emocional. Faz parte de nossas vidas e dos relacionamentos. Mas não qualificam o Natal, pois também é Natal para quem não tem família e não pode dar e receber presentes. Seu significado está em outro lugar. Recorda um fato – o nascimento na Palestina de um homem que se revelou Deus. Antes de uma mensagem, o Natal é um evento: Deus se fez um de nós e mudou a história. Cristo não se apresentou como profeta ou pregador, mas como um Deus que se fez homem para salvar todos os homens. Algo inédito que envolveu um número até então infinito de mulheres e homens.
Em primeiro lugar precisamos considerar que o Cristianismo não é a religião do amor ao próximo, ou da interioridade, ou da personalidade ou qualquer outra coisa deste tipo. Certamente, há algo de exato em tudo isso, mas tudo isso só adquire sentido quando fica claro o que é primeiro e autêntico aspecto da fé cristã.
Para Guardini, o Filho de Deus entra no mundo num sentido sem precedentes. Não apenas psicologicamente, na alma de uma pessoa piedosa, nem apenas em termos espirituais, nos pensamentos de uma grande personalidade. Deus se tornou homem, filho de uma mãe humana, fez-se um de nós, e permaneceu o que Ele é eternamente, Filho do Pai Eterno. Ele, que como Deus estava em tudo, mas sempre “do outro lado da fronteira”, veio para este lado da fronteira, e agora está perto de nós, está conosco.
Sempre chega o Natal, para quem não crê em Cristo ou nem admite a existência de Deus. Num mundo que parece abandonado à violência, algo novo pode começar. Mesmo na escuridão do desespero, a esperança pode abrir-se. Trata-se de abertura à novidade, em oposição à repetitividade do que sempre foi.
Aquele nascimento na gruta de Belém não é um conto de fadas ou um mito, mas um acontecimento histórico. Por isso, desde o cristianismo primitivo, os Santos Padres da Igreja preocuparam-se em romper qualquer relação entre o Natal e a celebração do sol invencível, à qual estava ligado nas culturas do Próximo Oriente. A vinda de Cristo não tem a ver com a natureza, mas com a história.
No centro do Natal está o Começo e não o Princípio de tudo. O começo não acontece apenas uma vez, mas infinitas vezes. A vida humana – e, portanto, de certa forma, também a história – simplesmente recomeça, por mais nascimentos que haja. A cada minuto alguém vem ao mundo e, já com a sua chegada, de alguma forma o muda. Mas mesmo dentro de uma única vida, a vida se renova continuamente. Não começa apenas uma vez, continuando em linha reta. Sempre muda, às vezes tornando-se irreconhecível. Todo dia, toda hora, pode ser a primeira vez.
Dom Leomar Antônio Brustolin – Arcebispo Metropolitano de Santa Maria e Presidente do Regional Sul 3