Sem lealdade só choro
Há mais tempo já desejava escrever algo sobre a “lealdade”. Lendo nos últimos dias a Fábula do “Lenhador e a Raposa”, ficou maduro o meu desejo de discorrer sobre a “lealdade”. Fiquemos primeiro com a Fábula: Era uma vez um lenhador que acordava bem cedinho, aos primeiros raios do sol. Trabalhava o dia inteiro, cortando lenha, e só parava no fim da tarde. Ele tinha uma bela filha pequena e uma raposa, sua amiga, a qual tratava como bicho de estimação e era de sua total lealdade. Todos os dias o lenhador saia para trabalhar e deixava a raposa brincando com sua filhinha. Todas as noites, ao retornar do trabalho, a raposa ficava feliz com sua chegada. Os vizinhos do lenhador, porém, alertavam-no e diziam-lhe que a raposa era um bicho, um animal selvagem e, portanto, não era digna de confiança. O lenhador, sempre retrucando com os vizinhos, falava que isso era uma grande bobagem, que a raposa era sua amiga e jamais faria algo de ruim. Os vizinhos insistiam: – “Lenhador, abra os olhos! A raposa vai devorar sua filhinha. Quando sentir fome, comerá a criança”. Um dia, o lenhador exausto por causa do serviço pesado, ao chegar em casa viu a raposa, abanando a cauda, feliz como sempre, saindo do quarto da criança e, ao lado da porta, um rastro de sangue. O animal tinha a boca totalmente ensanguentada. O lenhador tremeu, suou frio e, sem pensar duas vezes, acertou uma machadada na cabeça da raposa. Ao entrar no quarto, desesperado, encontrou sua filhinha no berço, dormindo tranquilamente e, ao lado do berço, uma cobra gigante já morta. O lenhador enterrou o machado e a raposa juntos. E chorou. Chorou. Chorou muito.
Pretendo trazer a reflexão sobre a lealdade, inspirando-me nas Sagradas Escrituras. Vamos, primeiramente, para o significado do termo “leal” nas duas línguas originais da Bíblia – hebraico para o Antigo Testamento e grego para o Novo Testamento. Assim, a palavra lealdade no hebraico – ‘emun, significa “estabelecido”, “confiável”, “fiel”, “verdadeiro…”, também de forma abstrata significa “confiabilidade”. ‘Emun deriva da palavra, ‘aman, uma raiz primitiva que significa “construir”, “dar suporte a”, “sustentar”, “adotar como um pai cuidador…”, figurativamente significa “ajudar”, “estar firme com”, “ser fiel a”, “confiar”, “crer”, “ser permanente…”, moralmente significa “ser verdadeiro”, “ser certo”. A palavra lealdade em grego é “pistós”, significa “digno de confiança”, “confiável”, “fiel”, “verdadeiro”. Exatamente o significado de ‘emun (hebraico) e pistós (grego) é o mesmo.
Tanto a língua hebraica como a grega sempre nos levam a uma realidade para cada palavra. Então, a partir do significado bíblico de “leal”, nós temos três princípios bíblicos que refletem a realidade da lealdade: a confiabilidade, a fidelidade e a verdade em relação a Deus e ao próximo. Esses três princípios nos deixam três testes a respeito da nossa lealdade: O primeiro teste deve responder à pergunta: Deus e o próximo podem confiar em mim? O segundo precisa responder à questão: Sou fiel a Deus e ao próximo que confiam em mim? O terceiro precisa responder a indagação: O meu coração está verdadeiramente envolvido na obra de Deus e do próximo?
Com esses três princípios da lealdade é possível criar aliança com Deus e com o próximo. Não há aliança sem ser confiável, sem ser fiel, sem ser verdadeira. Com o princípio da confiabilidade é possível crer na aliança – somos confiáveis; com o princípio da fidelidade é possível sustentar a aliança – somos fiéis; com o princípio da verdade é possível cimentar a aliança – somos verdadeiros. É maravilhoso oferecer lealdade e receber lealdade: quem é leal está presente para fortalecer aquele a quem empenha a sua lealdade; quem é leal investe com amor no crescimento daquele a quem ele é leal; quem é leal tem como precioso aquele a quem ele é leal.
A humanidade parece caminhar sempre mais para uma situação de deslealdade. Quanto mais ela se afasta dos valores transcendentes mais os interesses individuais vigoram nas relações. E, então, adeus lealdade!
O Deus bíblico é e vive em plenitude a lealdade. Ele é plenamente confiável, totalmente fiel, transparentemente verdadeiro. Ele torna-se, assim, a escola permanente dos princípios da lealdade. Em contato íntimo com a lealdade divina, a humanidade reaprenderá continuamente a confiança, a fidelidade e a verdade. O sonho de uma esperança de lenhadores leais com raposas e de raposas leias com lenhadores será possível e concreto. Não podemos continuar com machados de lenhadores só dando machadadas nas raposas. Nem podemos concluir que dentes ensanguentados de raposas são sempre sinônimos de morte. Senão, vamos apenas chorar, chorar, chorar muito!
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo de Pelotas