Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo: algumas reflexões

Anualmente nos reunimos para celebrar a Solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, popularmente conhecida como Corpus Christi. Instituída pelo Papa Urbano IV, em setembro de 1264, esta solenidade torna-se momento singular para “testemunhar publicamente a veneração para com a santíssima Eucaristia” (CIC, cân. 944 §1). O Evangelho desta Solenidade é do conhecido capítulo sexto do Evangelho segundo São João. O trecho que somos convidados a meditar é tirado da segunda parte do discurso sobre o Pão da Vida.

Pão que vem de Deus

As palavras de Jesus no Evangelho são tão reais e fortes que excluem qualquer interpretação no sentido figurado: o Pão que Ele nos promete é um Pão que vem de Deus, é o “pão vivo descido do céu” (Jo 6,51a). Por essa afirmação, “Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens” (Sacramentum Caritatis, 7).

Esse Pão a Igreja entendeu como sendo a Eucaristia, de modo especial pela semelhança com os próprios textos da Instituição da Eucaristia (Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,14-20; 1Cor 11,20-26). Sendo assim, o pão eucarístico que comungamos não é alguma coisa, mas é alguém: é um “vivente” e, justamente por isso, confere vida e vivifica aquele que o recebe. Pela Eucaristia, Jesus “dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós” (Sacramentum Caritatis, 7).

A Eucaristia carrega o grande mistério de Deus, marcado essencialmente pelo amor da Santíssima Trindade. Por isso faz todo sentido que, depois de Pentecostes, quando acontece a manifestação pública da Igreja, e da Solenidade da Santíssima Trindade, na qual celebramos a grandeza do mistério do amor trinitário, saiamos pelas ruas manifestando nossa fé na presença real de Jesus Cristo na Eucaristia: é seu corpo e sangue, sacrificados por amor de muitos, que contemplamos de modo muito particular na pequena Hóstia que vai sendo ostentada pelas ruas de nossas cidades.

O Papa Francisco é claro ao afirmar que “o conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, o seu sacrifício em obediência de amor ao Pai” (DD 7). Esse sacrifício fez com que a cruz, antes instrumento de tortura e morte, passasse a ser sinal de vida graças à Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. No Prefácio da Santíssima Eucaristia I, recomendado para esta solenidade, rezamos algo belo e que deve ressoar pelas nossas igrejas, da boca do sacerdote ao coração de cada fiel: “Ele, verdadeiro e eterno sacerdote, oferecendo-se a vós pela nossa salvação, institui o Sacrifício da nova Aliança e mandou que o celebrássemos em sua memória. Sua carne, imolada por nós, é o alimento que nos fortalece. Seu sangue, por nós derramado, é a bebida que nos purifica”.

Pão que garante a comunhão

Jesus mesmo afirma que “quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6,56). Para compreender isso precisamos, primeiro, entender que, na compreensão semita, falar de carne e sangue é o mesmo que falar do homem inteiro. Assim, podemos entender que o oferecimento de Jesus é por inteiro: Ele doa-se por todos inteiramente e quer que cada um, para manter a comunhão com Ele, coma dessa carne e beba desse sangue.

De acordo com o grande exegeta dominicano Manuel de Tuya, naquele ambiente, comer a carne sacrificada era participar do sacrifício. Então, comer da carne de Jesus, beber do seu sangue, como Ele mesmo garante, é participar com Ele do sacrifício ofertado por todos. Comer essa carne “eucaristizada” é, portanto, participar do sacrifício eucarístico oferecido em cada Celebração Eucarística.

Os judeus, e não poderia ser diferente, ficaram escandalizados com o fato de Jesus querer dar de comer da própria carne. Não deixa de ser a velha pergunta racionalista: “como?”. Diante dessa dúvida, Jesus não só não corrige sua fala, como também não a atenua, nem a explica, mas a reafirma: “em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6,53).

Portanto, para termos vida em cada um de nós precisamos receber desta carne e deste sangue, o que também garante a união com o próprio Jesus. Na segunda leitura da Solenidade que celebramos, Paulo escreve à comunidade de Corinto questionando: “o cálice da bênção, o cálice que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo?” (1Cor 10,16). Então, partir o pão da Eucaristia, esse pão vivo descido do céu, é estar em comunhão com corpo e sangue de Cristo, com Jesus por inteiro. Mas essa união com Cristo também garante a união com os demais: “porque há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão” (1Cor 10,17). Então, ao celebrarmos a Eucaristia, reafirmamos e garantimos nossa comunhão com Jesus Cristo e, evidentemente, com a Trindade, mas também com os irmãos, formando um único corpo cuja cabeça é o próprio Jesus.

Pão que é sinal de esperança

Cabe destacar que “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54). Essa promessa de Jesus é sinal de esperança para todos: ao comungarmos garantimos nossa caminhada neste mundo em direção ao Senhor.

Nesse sentido, o Papa Francisco nos ajuda a compreender que “Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa” (EG 13). Ser introduzido na Páscoa é ser introduzido na passagem para uma vida nova a cada celebração eucarística, provocando para uma vivência cada vez mais fiel ao que nos ensinou o próprio Jesus, mas é também uma passagem em sentido escatológico, tendo em vista o fim de nossa vida terrena e a esperança da vida eterna e da ressurreição.

A Eucaristia que celebramos e comungamos, “embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (EG 47). Por isso é também sinal de esperança: mesmo imperfeitos, chagados por tantas falhas, pecados, fraquezas e hipocrisias, o Senhor nos deixa sua carne e seu sangue como alimento e remédio.

Somos chamados, por fim, a pautar nossa vida pela forma com que viveu o Senhor. Isso se dá na comunhão com o Pão descido do céu, mas também pela forma com que vivemos, sempre na esperança da vida eterna: “Bom Pastor, pão de verdade, ó Jesus, piedade, conservai-nos na unidade, extingui nossa orfandade, transportai-nos para o Pai! Aos mortais dando comida, dais também o pão da vida; que a família assim nutrida seja um dia reunida aos convivas lá do céu!” (da sequência de Corpus Christi).

Que a Solenidade Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo seja para nós um espaço para reafirmarmos nossa fé na presença real de Jesus Cristo na Eucaristia e seja alimento para nossa vida espiritual. Que ao caminharmos pelas ruas de nossas cidades, sobre os tapetes confeccionados por muitas mãos, lembremos do grande número de irmãos que buscam alimento, material ou espiritual, e tantos outros que morrem nas guerras. Rezemos por tantas vítimas inocentes e indefesas com as quais queremos compartilhar a graça do pão da vida e do vinho da salvação.

Pe. Ari Antonio dos Reis
Renan Paloschi Zanandréa