Temperar a Humanidade

“Esperança é a paixão por aquilo que é possível.”  (Dom Leomar Brustolin)

Em recente artigo publicado na revista Vida Pastoral, Dom Leomar Brustolin, Bispo Auxiliar de Porto Alegre e Professor da PUCRS, propõe que alarguemos a visão, sob a perspectiva da fé, que aponta-nos um horizonte bem mais amplo do que o momento presente vivenciado. A pandemia não é, e não pode ser, a única dimensão significativa da nossa existência, embora demande cuidados e zelo pela proteção da vida, reconhecendo-a como presente amoroso de Deus e, por isso mesmo, valiosa. Ao não dispormos de recursos para vencer imediatamente a pandemia podemos, ao menos, ocupar-nos em desenvolver em nós as competências necessárias para mantermos o equilíbrio mental, afetivo e relacional.

O fato é que observamos – e muitas vezes fazemos parte disso – nossa humanidade anda bem destemperada. Especialistas analisam a situação e explicitam que não se trata de algo local, mas global. Em quase todos os cantos do mundo as pessoas vêm perdendo facilmente a paciência, os limites e a capacidade da autocrítica e autocontrole. Estamos destemperados. Bem sabemos que a falta de tempero num alimento torna-o, por vezes, desagradável ao paladar. Porém, não há maiores consequências. Já a falta de tempero em uma pessoa pode trazer consigo desastres graves para o convívio e o futuro dela e do meio em que vive.

Aristóteles insistia na importância de exercitarmos a areté, as virtudes, através da repetição dos bons hábitos. Ocorre que, na pressa exigente da sociedade que criamos fomos perdendo alguns dos ensinamentos mais elementares, e o pior é que nos acostumamos com isso. Hoje passar por alguém sem olhar, sem cumprimentar ou ver alguém num momento de extrema dificuldade sem nos dispormos  a olhar para ele, tornou-se algo normal. Alguns comovem-se com a espetacularização produzida pela mídia quando, com intenções de audiência, recorre à mesma tecla como foi o caso do menino Alan Kurdi, refugiado encontrado à beira da praia afogado e cuja imagem rodou o mundo, mas não passa de um sentimentalismo que, na melhor das hipóteses, ainda demonstre haver algo de humano em nós. Em poucos minutos nós, os mesmos que ficamos indignados com tanta falta de humanidade, passamos por dezenas de invisíveis sociais sem  comoção e  reflexão sobre o que estaria ao nosso alcance, a fim de minimizarmos o sofrimento de tantos que, aos olhos da maioria, não existem, não importam e não fazem falta.

É hora de retemperar a humanidade. “Se todos entenderem o significado de estarmos juntos e na solidariedade que nos envolve, cresceremos”, afirma o autor do artigo que encima esta crônica, em sua epígrafe. O exercício da fraternidade aprofunda-se na solidariedade para com o próximo. Colocando-nos no lugar do outro, ou melhor, ao lado do outro que mais necessita, nada perdemos e tudo ganhamos. Talvez não tenha um grande significado social e nem sejamos festejados pela estampa dos jornais, blogs e sites de empresas milionárias, às quais pouco interessa realmente a dor do outro uma vez que,  para eles, esta dura apenas o instante de promover a audiência, mas certamente estaremos dando um pouco de sabor à vida de alguém, proporcionando-lhes um alento em meio à tanta indiferença.

Ainda há esperança. E esta, não é algo teórico construído com frases de efeito, mas com mãos, mentes e corações que tornam efetivo o amor ao próximo. Como bem dizia São Vicente, “é necessário um amor afetivo e efetivo”. Que a nossa fé no Deus da vida lance-nos ao encontro do próximo, como o fez o samaritano, como o fizeram São Francisco de Assis e tantos outros para quem a esperança impulsionou a abrir caminhos tornando possível o que até então parecia incerto. Por hoje, meditemos sobre o quanto podemos fazer a quem mais precisa. E nem precisamos investir todas as forças, basta um pouco de paixão, de compaixão, de amor pelo que resta desta pobre humanidade que habita em nós.

Prof. Dr. Rogério Ferraz de Andrade