Entrevista Especial: Moema Miranda fala sobre a CF 2025 e a urgência da conversão ecológica

Superar o antropocentrismo e agir pela sustentabilidade: Moema Miranda discute a crise socioambiental e os desafios da Campanha da Fraternidade 2025

 

Nesta entrevista, Moema Miranda, antropóloga e assessora da Comissão para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, aponta as raízes históricas da crise socioambiental em entrevista exclusiva sobre a Campanha da Fraternidade 2025. Com o tema “Fraternidade e Ecologia Integral”, a Campanha tem texto-base redigido com a colaboração de Miranda, que aprofunda a análise da temática e convida à reflexão sobre o futuro do planeta.

Miranda revela como a ditadura militar, sob o discurso de “progresso”, impulsionou um modelo desenvolvimentista predatório, com graves consequências para os povos indígenas e o meio ambiente.

Com base em sua vasta experiência e na redação do texto-base da Campanha da Fraternidade, Moema convida a uma profunda reflexão sobre a relação entre humanidade e natureza, apontando caminhos para uma verdadeira conversão ecológica. A superação do antropocentrismo, a busca por um futuro harmonioso e a necessidade urgente de ação conjunta para garantir a sustentabilidade são temas centrais da entrevista.

Qual a relação entre a ditadura militar na América Latina e o modelo desenvolvimentista? E quais as consequências desse processo para a Amazônia, em especial no que tange à exploração de recursos naturais e conflitos socioambientais?

Moema Miranda – O que a gente tem hoje comprovado e tentado fazer a conexão, porque muitas vezes a gente diz tudo está interligado, mas a questão é como as coisas se interligam, o que vincula, que com que, é que de fato, na época maior do desenvolvimentismo na América latina, essa época de instauração do projeto desenvolvimentista, não por acaso coincidiu com ditaduras militares na maior parte dos nossos países. E as ditaduras tiveram esse sentido de integração de países considerados atrasados na economia mundial. E integrar, nesse momento e nessa perspectiva, era integrar aos interesses do mercado internacional, aos interesses do capital internacional.

Por isso a política da ditadura na Amazônia foi a política de integração, “integrar para não entregar”, era o grande lema. E integrar dentro de uma lógica desenvolvimentista de progresso e desenvolvimento, em que isso significava, antes de tudo, explorar as riquezas e transformar tudo o que nós hoje consideramos como os bens comuns em riqueza.

Então grandes projetos de transformação da Amazônia, com estradas, com exploração da madeira, com construção de condições para a expansão do agronegócio, que naquele momento era chamado do latifúndio. Então, já na década de 70, a gente via uma grande disputa de projetos, de como a Amazônia devia integrar o projeto de desenvolvimento nacional. Não por outro motivo, Dom Pedro Casaldáliga, em 1971, lança o seu grande manifesto, “Uma Igreja na Amazônia, em conflito com o latifúndio e a injustiça social”. Então esses dois projetos já estavam em disputa naquele momento. Um projeto que era um projeto da Amazônia para os amazônidas, para os povos e com a floresta, e um projeto que era um projeto que pensava desenvolvimento como destruição da floresta, exploração dos recursos naturais. A ditadura foi fundamental para dar início a esse projeto na Amazônia.

 A Comissão da Verdade revelou a morte de pelo menos 8,3 mil indígenas durante a ditadura. Qual a relação entre essa violência e a política de desenvolvimento da época?

Moema Miranda – Parte desse projeto, portanto implicava em desindigenizar os indígenas, se podemos dizer assim. Em tutelar os indígenas. Lembrem-se, nesse momento, de que os indígenas eram considerados pessoas que não tinham autonomia: eles eram tutelados pelo Estado Nacional e considerados empecilhos ao progresso.

Então, toda a lógica era justamente a de destribalizar, remover de cada um dos seus espaços. E durante muito tempo – e a Comissão da Verdade, como vocês relembram, demorou muito para identificar – os indígenas foram elementos fundamentais na resistência à ditadura e na resistência a esse projeto de morte.

Hoje é importante voltar, valorizar – e existem livros nessa direção – como a organização dos indígenas, e a partir daí do CIMI e de outras organizações que os indígenas foram organizando, fez resistência a esse projeto, até 1988, na Constituição Cidadã. Nela, pela primeira vez, os indígenas passam a não ser mais tutelados, como resultado de uma grande luta e de uma grande articulação no processo de redemocratização.

Então, o processo de redemocratização no Brasil teve a participação fundamental dos povos indígenas, e essa memória tem que ser trazida e valorizada.

Como o discurso de “progresso” que justifica ações contra os povos da floresta impacta a preservação ambiental e a vida de povos originários e comunidades tradicionais?

Moema Miranda – A noção de progresso e desenvolvimento que nós temos, foi concebida a partir de um paradigma, de uma visão de mundo em que os seres humanos são o centro de toda a criação e que a eles é dado a tarefa de dominar todos os outros seres aos seus próprios interesses.

O Papa Francisco, em sua encíclica Laudato Si’, já criticava a visão antropocêntrica que coloca o ser humano como centro e senhor de toda a criação. Em Laudat Deum, ele aprofunda essa crítica, denunciando o que chama de “antropocentrismo despótico”, no qual a natureza é vista como mera ferramenta a ser dominada em nome do progresso e do desenvolvimento. Essa lógica, porém, ignora a interdependência entre todos os seres e a necessidade de respeitar a integridade da criação.

Felício Pontes (Procurador do Ministério Público Federal) tem falado muito sobre isso: como Descartes, quando constrói a lógica do ser humano como mestre e senhor da natureza, instaura um novo paradigma. Mas não apenas Descartes; toda a ciência moderna, com Bacon, implica numa negação dos saberes anteriores e na afirmação da ciência racional como a que conhece a natureza. Conhece porque transforma a natureza, toda a natureza, em coisa, em res, em coisa que você pode dominar, sem alma, sem presença espiritual.

Esse desencantamento da natureza, de que fala Max Weber, também é condição de possibilidade para o desenvolvimento do capitalismo tal como o conhecemos. O desenvolvimento do capitalismo supõe essa negação da presença espiritual, dos espíritos, de todas as outras formas de religião que eram intrinsecamente vinculadas ao reconhecimento de uma natureza animada.

Na própria Europa, até o início do capitalismo, prevalecia a ideia da anima mundi, a ideia de que a natureza era vivente. Isso se articula com a ciência contemporânea, com a teoria Gaia de James Lovelock e com a compreensão contemporânea de que toda a natureza se interliga, e que o mundo da vida se interliga e cria um mundo cada vez mais vital, mais cheio, com mais condições de vida. Como canta o cantor: “a vida gera vida”.

Essas compreensões são absolutamente diferentes. É você olhar para a floresta e ver nela uma riqueza de vida, e se integrar como humano a essa riqueza. Nós, franciscanos, dizemos que a terra é mãe que sustenta e governa; se ela sustenta e governa, ela também estabelece o limite. Isso é o contrário do que dizem as concepções modernas de progresso e desenvolvimento.

Por isso, a mudança que precisamos fazer é tão profunda, porque ela é uma mudança de cosmovisão, de cosmopercepção, de entendimento do nosso lugar no mundo.

Como a exploração do planeta e a busca incessante por desempenho contribuem para as doenças e o esgotamento mental da sociedade moderna, especialmente a ecoansiedade?

Moema Miranda – Essa lógica de explorar e acumular, em que riqueza é acumulação de bens, em que rico é quem tem mais dinheiro numa conta bancária, quem tem mais ouro (não onde ele está mais colocado, embaixo da terra!), de que essa acumulação não tem limite e de que toda a natureza pode ser transformada em mercadoria, esse processo de mercantilização do mundo da vida, supõe também a exploração dos humanos que não estão no topo.

Por isso, o Papa Francisco fala, já na Laudato Si’, que esse paradigma, que ele chama de paradigma tecnocrático, é um paradigma que se baseia, que supõe vencedores e vencidos. Então, também os seres humanos, como a natureza, passam a ser explorados incessantemente.

Byung-Chul Han constrói a ideia de que, nesse momento, com o neoliberalismo absolutamente implantado no mundo, vivemos na sociedade do desempenho, e o neoliberalismo faz com que a gente introjete esse explorador que antes estava fora, esse explorador que era o patrão, que permitia que os trabalhadores se organizassem para fazer resistência. A introjeção desse paradigma, em que cada um vira ao mesmo tempo explorado e explorador – e o que é pior, ele diz, com a ideia de que isso é liberdade: “eu faço meu tempo, eu sou empreendedor de mim mesmo” –, essa obrigação de empreender a si mesmo é absolutamente esgotante, leva a esse burnout, a esse cansaço absoluto, a esse esgotamento de cada um de nós, pela nossa própria exploração. Você vai vendo como essa lógica integra a relação da gente com a gente mesmo, da gente com as outras pessoas e da gente com toda a natureza.

Essa forma de viver não pode produzir outra coisa que não adoecimento. Hoje já estão comprovadas as doenças ligadas à ansiedade de um ambiente esgotado, como você fala da ecoansiedade. Porque, ainda que a gente não tematize esse esgotamento, que a gente não fale sobre ele, o medo constante do fim do mundo, o medo constante de que as coisas acabem, o medo constante de que você não consiga desempenhar como os outros desempenham, como você olha no Instagram dos outros e vê as outras pessoas sorrindo e felizes e tendo êxito e só você não, não é? Isso vai levando, evidentemente, a um adoecimento individual e a um adoecimento da sociedade. É impossível que nós, seres humanos, que somos terra, estejamos sadios numa terra doente.

O Papa Francisco enfatiza a necessidade de uma “conversão ecológica”. O que isso significa na prática e como podemos promover essa mudança de mentalidade para uma ecologia integral, tema da Campanha da Fraternidade 2025?

Moema Miranda – A Campanha da Fraternidade, com o tema da conversão integral, é bastante abrangente. Tanto na campanha em si quanto no texto-base, encontramos a terceira parte dedicada às ações e iniciativas que podem ser estimuladas, e estas são apenas algumas sugestões. O processo de conversão, para ser integral, exige uma dimensão pessoal: trabalho individual, conhecimento, transformação de hábitos e de cosmovisão. Mas a conversão integral também possui uma dimensão comunitária, coletiva e política.

Ao propor esse tempo de conversão para a ecologia integral, a Igreja propicia que as pequenas iniciativas locais se somem a uma grande onda de transformação. Atualmente, enfrentamos um desastre imenso, e nossas iniciativas, como diz o Papa Francisco, estão aquém do necessário. Mas é nesse “multilateralismo de baixo”, como o Papa chama, nessas múltiplas iniciativas que sozinhas parecem insignificantes, mas que juntas formam um mutirão, que a Campanha da Fraternidade pode contribuir.

Que caminhos podemos trilhar para transcender a visão antropocêntrica do “ego” e abraçar uma perspectiva ecológica do “eco”, reconhecendo nossa interdependência com todos os seres e com o planeta?

Moema Miranda – Estamos em um momento fundamental de mudança de época, de mudança de era. Mais do que nunca, somos chamados pela Terra, pelos pobres e também pelo Papa Francisco e pela Igreja para fazer uma mudança profunda de concepção. Para mudar de uma concepção baseada no ego, na pessoa, na individualidade, no antropocentrismo, e fazer uma passagem para uma leitura de mundo mais cosmológica, mais cósmica, mais amorosa.

Como é que a gente faz essa passagem? Como é que a gente faz essa mudança? Como é que a gente faz a conversão? Antes de tudo, nesses tempos que nós estamos vivendo, aprofundando e buscando na nossa própria tradição cristã, aqueles que foram inspiração, aqueles que nos chamaram antes. São Francisco, Santa Clara e tantos outros que nos chamaram a esse amor profundo, a nos reconhecer como integrantes da criação, como filhos e filhas de um Deus de amor, tanto quanto as árvores, as flores, os bosques e a montanha.

Então, na nossa tradição, os Salmos, os chamados. Os chamados de Jesus nos dizem isso. A natureza é sábia, ela nos ensina. “Olhai os lírios do campo, aprendei com as aves do céu.” Esse é um chamado que nós temos há dois mil anos. É a hora da gente se converter a esse Jesus que nos inspira, que nos anima e que caminha conosco. Paz e bem.

 

Por Osnilda Lima | Cepac-CNBB