WEBMAIL

“Felizes os mansos pois herdarão a terra”

O mês de novembro é assinalado o Mês da Consciência. A referência principal é o dia 20, data da Morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Lê-se a data de 20 de novembro conjugada a data de 13 de maio.

Esta segunda tem presente a figura histórica da Princesa Isabel, que assinou o texto sucinto e limitado da Lei Áurea, portanto um projeto inconcluso para os negros.  Naquele tempo, aboliu a escravidão, mas não combateu as outras formas de exclusão social advindas do processo escravagista. O dia 20 de novembro assumido como data celebrativa referência de luta surge a partir do protagonismo dos negros e negras brasileiros e também da inquietude quanto ao dia 13 de maio, já que muitos não se viam representados nas comemorações desta última data.

As atividades em torno do Mês da Consciência Negra são também momento oportuno para a revisão da história sobretudo no que diz respeito à construção de teorias equivocadas sobre o processo escravagista que demarcou as relações econômicas, sociais, culturais e religiosas brasileiras por quase três séculos. Uma das leituras equivocadas diz respeito à teoria da não resistência dos negros à escravidão. Eles resistiram. A própria articulação quilombola, aliada a outras iniciativas revela a resistência dos negros ao regime escravagista. Eles não aceitaram passivamente uma imposição que lhes tirava a liberdade e feria a dignidade. Não foram mansos. Lutaram constantemente, em diferentes épocas, de diversas maneiras, contra o sistema. Tem sentido uma frase proferida por várias lideranças negra; “nossos antepassados não eram escravos, foram feitos escravos”, mas houve resistência.

A desconstrução da teoria da mansidão dos negros convida a olhar para Jesus Cristo, especificamente uma expressão por Ele utilizada no discurso das bem-aventuranças (Mt 5, 1-12), parte do Sermão da Montanha (Mt 5-7).

Quando Jesus proclamou:  “bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra” (Mt 5,4), não se referia às pessoas que se encontravam numa situaçãode mansidão, no sentido ingênuo de serem “pacíficas”, “piedosas” ou “frágeis”. No contexto bíblico, ser “manso” estava relacionado à situação de ser “amansado”, ou seja, de ser literalmente “domado”, desprovido de qualquer direito, dignidade e autonomia. E Jesus não expressa esta bem-aventurança por acaso. Em sua época, muitos eram aqueles que viviam subjugados pelos pesados fardos impostos pelo Império Romano, privados de qualquer bem (como a terra) que lhe garantisse uma vida digna.

O discípulo de Jesus não aceita ser amansado. Assim como o homem Nazaré, assume com coragem o enfrentamento daqueles que buscam “amansar” o outro em nome de seus interesses particulares. Nesse caso assumem a dimensão profética da fé denunciando toda realidade contrária ao desejo de Deus e o anunciando outras possibilidades de vida como disseram Pedro e João às autoridades do sinédrio: Não podemos nos calar sobre o vimos e ouvimos (At 4,20). O povo negro não tem silenciadodiante do flagelo da escravidão do passado e do racismo atual que ameaça cotidianamente a sua existência. Assim como Pedro e João os negros não podem calar-se. Têm algo a dizer para a sociedade e falam a partir de um lugar, a sua história de vida marcada por muitas negações; da liberdade, da dignidade, do direito a viver bem. Não aceitam a mansidão se esta significa ficar calado.

Eis a natureza profética deste dia: não é somente falar daqueles que, ainda hoje,são silenciados, mas estar ao lado daqueles que fazem sua voz ecoar, clamando por justiça, diante das inúmeras si tuações negadoras da vida digna pelas quais passam por causa da sua pertença.

Em tempos em que as balas perdidas têm endereço; que se confunde o combate à criminalidade com violência institucional; que governos tratam reivindicação social como caso de política ou terrorismo, em que os povos quilombolas são desrespeitados quanto a sua história e seus direitos, faz-se necessário superar a mansidão. Ela agrada alguns ao custo da vida e da dignidade de muitos. “Falar algo” neste Dia da Consciência Negra é fazer e refazer a história que até então é moldada por aqueles que comandam, exploram e silenciam os seus “amansados” aos quais eventualmente se contendam a dar esmola, mas jamais querem partilhar.

Ao longo dos anos o movimento negro foi formando lideranças ríticas e atentas ao seu papel na sociedade. Ocuparam os espaços na cultura, nas cátedras universitárias, nos púlpitos dos templos religiosos e também nas ruas. O povo negro aprendeu a defender a sua causa, descobrindo, assim, qual é o seu papel numa sociedade que insiste ser excludente. Este protagonismo jamais será tirado.

Vale a pena recordar que “existe uma história do povo negro sem o Brasil, mas não existe uma história do Brasil sem o povo negro”. Podemos usar outra bem-aventurança proposta por Jesus: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque deles é o Reino dos céus (Mt 5,10).

Pe. Ari Antonio dos Reis

Seminarista Joelmar de Souza