Sacrosantum Concilium: A renovação e valorização da Liturgia
Há 60 anos, decorria o Concílio Vaticano II, soprando novos ventos e apontando novos rumos à Igreja.
O artigo a seguir inaugura a série de reflexões sobre os 60 anos do Concílio, de autoria do Frei Darlei Zanon.
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O Vaticano II marcou profundamente a vida da Igreja e é essencial para compreendermos a sua definição e estrutura atual. A fim de resgatar os preciosos ensinamentos do Concílio, neste ano em que celebramos 60 anos da sua abertura, refletiremos juntos sobre os seus vários documentos, começando por um dos mais importantes, a Constituição Sacrosantum Concilium (O Sagrado Concílio).
No dia 25 de janeiro de 1959, o Papa João XXIII anunciava a necessidade de convocar um novo Concílio Ecumênico, o 21º da História da Igreja – o anterior, Vaticano I, tinha ocorrido em 1870, mas sem grande repercussão. Na convocatória do Concílio Vaticano II, publicada apenas em 25 de dezembro de 1961, o Papa especificou as razões do encontro: “A Igreja assiste a uma crise que aflige a sociedade humana”. João XXIII fazia assim um convite à Igreja para distinguir “os sinais dos tempos” (Mt 16,3) e manter-se vigilante e responsável, confiante em Cristo. O Concílio seria a resposta da Igreja ao desejo de colaborar mais eficazmente na solução dos problemas da época. Assim foi verdadeiramente. No dia 11 de outubro de 1962 iniciou oficialmente os trabalhos conciliares, que terminariam apenas três anos depois, em 8 de dezembro de 1965, não mais com o Papa João XXIII, mas com Paulo VI.
O primeiro documento aprovado pelos bispos conciliares, cerca de dois mil e duzentos, foi a Sacrosantum Concilium (SC), sobre a Liturgia. A renovação da Liturgia era uma exigência unânime, fruto das transformações trazidas pelo movimento litúrgico iniciado no final do século XIX. O movimento resgatou elementos da Escritura, da origem do Cristianismo e da Tradição da Igreja, dando à Liturgia um estatuto teológico e revelando toda a sua riqueza. Os documentos de Pio X, Tra le sollecitudini (1903), e de Pio XII, Mediator Dei (1947), já apontavam a necessidade de renovação da liturgia, justificada teológica, histórica e pastoralmente. Durante a apresentação do texto da Sacrosantum Concilium houve 328 intervenções orais e 625 escritas, mas o documento foi aprovado sem controvérsias no dia 4 de dezembro de 1963, com 2147 votos a favor e apenas 4 contra.
A promulgação deste documento foi um marco na vida da Igreja, fundamental para a promoção e desenvolvimento da Liturgia. Devolveu-se a ela a verdadeira importância e centralidade na vida cristã, pois é a mais perfeita expressão do mistério de Cristo e da nossa união com Deus: “A liturgia contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação.” (cf. SC 2)
A Sacrosantum Concilium é dividida em sete capítulos. Logo no primeiro encontramos a sua fundamentação teológica, parte mais importante e profunda do documento. A Liturgia é apresentada no horizonte da História da Salvação, cujo fim é a redenção humana e a perfeita glorificação de Deus. Ela é sacrifício, memorial do mistério pascal, renovação da aliança. Ela é “simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” (SC 10). Sobre a presença de Cristo, o ponto sete esclarece-nos que: “Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, quer na pessoa do ministro, quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta (Mt 18,20).”
O segundo capítulo retoma esse tema, mas trata especificamente do mistério eucarístico como memorial da morte e ressurreição de Cristo. Uma das maiores preocupações do Concílio, em sintonia com o movimento litúrgico, foi rever os ritos, tornando-os mais simples e significativos. O ritual da missa foi simplificado e a liturgia da Palavra ampliada. A homilia passou a ser muito valorizada, pois é “a exposição dos mistérios da fé e das normas da vida cristã” (SC 52). As renovações apontadas para os outros sacramentos são enfatizadas no capítulo três e referem-se principalmente à revisão dos rituais, realizada com primor nos anos seguintes.
O capítulo quatro ocupa-se do Ofício Divino, cuja recitação é incentivada e a maior mudança é o uso da língua vernácula. O uso da língua própria de cada país foi uma das principais revoluções trazidas pelo Concílio e aplicada a toda a Liturgia. Esse tema é tratado nos números 36 e 54 do documento, ainda no primeiro capítulo. Ali também se diz que a celebração comunitária é preferida à individual (SC 27), incentivando-se a presença e participação ativa dos fiéis.
A participação sempre maior e mais ativa dos fiéis na liturgia foi o pano de fundo que incentivou as principais renovações do Concílio. Hoje, analisando o número sempre decrescente de fiéis que vão à igreja regularmente, os chamados “praticantes”, a preocupação volta à tona. Tal situação deve fazer a Igreja, que no fundo somos todos nós cristãos, repensar sua constituição e renovar-se, resgatando e atualizando as indicações do Concílio. O Papa Francisco tem se esforçado enormemente para aplicar o Concílio, mas não basta se a base, o Povo de Deus, não fizer o mesmo.
Ao longo das últimas seis décadas muitas coisas foram feitas, mas a necessidade de renovação é sempre atual. Uma vez aprovada, a Sacrosantum Concilium influenciou decisivamente toda a Igreja, no modo de pensar, de ensinar, de olhar para suas instituições e para o mundo. Imprimiu-lhe nova dinâmica que continua viva e convocando a Igreja a estar atenta à linguagem do seu tempo e lugar. Mantém-se sempre atual a necessidade de formar o clero e os leigos, conforme indicam os números 14 a 20. Para isso foram criados os diversos centros de liturgia, as comissões regionais, nacionais e internacionais, os cursos de liturgia, as semanas de formação e diversas outras iniciativas.
Temos ainda os capítulos 5, 6 e 7, que tratam respectivamente do Ano Litúrgico (caminho através do qual a Igreja recorda e revive o Mistério pascal de Cristo), a Música e a Arte Sacra, que devem contribuir para a beleza e dignidade do culto.
O Concílio mostrou-nos que a liturgia é o momento privilegiado de encontro com Deus, ensinou a valorizar e redescobrir o valor da Palavra e da Eucaristia e a importância da oração e do silêncio, da reflexão bíblica, da força que vem da Eucaristia. No próximo artigo, sempre neste espaço do Regional Sul 3, veremos como tudo isso influenciou na definição do que é a própria Igreja, com a análise do documento Lumen Gentium.
Darlei Zanon, religoso paulino