No dia 11 de outubro de 1962, há exatos 60 anos, iniciava o Concílio Vaticano II, acontecimento fundamental da vida da Igreja contemporânea. E ouso afirmar que o Vaticano II foi também o marco fundamental que tentou preparar a Igreja para a relação com o continente digital e a sociedade em rede, o tempo e o espaço onde todos vivemos hoje, caracterizado principalmente pelas transformações da economia, política, cultura e organização empresarial e social introduzidas pelas redes tecnológicas.
Como teorizou o sociólogo catalão Manuel Castells, a sociedade em rede é o produto histórico de três mudanças fundamentais: cultural, com os movimentos de contestação cultural do Maio de 1968 e depois à guerra do Vietnam; tecnológica, com os computadores e o nascimento da internet em 1969; econômica, com a crise global do petróleo na década de 1970 e a busca de novos mercados, culminando na globalização e desregulação das atividades econômicas e financeiras. Coincidência ou não, o Concílio foi realizado no período em que a sociedade em rede dava os seus primeiros passos, quando começava a ser moldada.
Segundo o próprio Papa João XXIII, os objetivos do concílio seriam a renovação interior da Igreja, a promoção da unidade entre todos os cristãos e a paz no mundo, priorizando a questão pastoral. Dentre as principais transformações trazidas destacam-se a reestruturação da Igreja. Queria-se adaptar a doutrina ao mundo contemporâneo, pós-moderno e com valores totalmente diferentes dos períodos anteriores. Falava-se constantemente em aggiornamento, que significa aperfeiçoamento, atualização, uma reeducação visando estar inteirado com a modernidade. O caráter pastoral assumido significa um novo modo de agir da Igreja e do seu magistério, um agir mais voltado para o mundo e para as suas necessidades. O diálogo com a sociedade e com as outras Igrejas e crenças. A Igreja se propôs a abrir-se ao mundo e a penetrar na cultura dita “profana”, pois tomou consciência que não é fugindo do mundo que se resolvem os problemas que têm origem nele. Somente ao enfrentar os problemas pode-se encontrar uma solução para eles.
Com o Vaticano II houve uma verdadeira renovação da Igreja, que se mantinha fechada em um clericalismo vertical e hierárquico. Deu-se um novo ar ao catolicismo e um novo modo de ele se manifestar, devolvendo à Igreja o espírito comunitário e a organização horizontal característicos dos seus primeiros séculos. A novidade do Vaticano II foi sobretudo mostrar uma Igreja que quer ser atual, voltar a ser comunhão, valorizar o ser humano e reconhecer que não está só. Esta nova concepção é fundamental para uma boa relação com a sociedade em rede, que se formava exatamente ao mesmo tempo.
A constituição sobre a Igreja, a Lumen Gentium, torna-se como que o tronco do Concílio e representa, no campo da eclesiologia, uma autêntica revolução. Surge um novo modo de ser e de compreender a Igreja. De um modelo de Igreja como sociedade perfeita passa-se agora a uma pluralidade de imagens, complementares entre si e orientadas pela perspectiva do mistério e da Trindade. O Concílio pede que entre pastores e fiéis haja uma “comunidade de relações” e um mútuo apoio, pois todos são “chamados à santidade”.
A Lumen gentium é provavelmente o documento mais importante do Vaticano II, pois fez a Igreja refletir sobre sua essência, sobre sua origem e constituição interna. A sua redescoberta como mistério marca o retorno às origens ao mesmo tempo que se abre a todas as novidades trazidas pelos novos tempos. A conscientização da Igreja como mistério ligado ao mistério de Cristo e não como sociedade perfeita deu um novo rumo e apontou caminhos interessantes que infelizmente ainda não foram todos explorados ao longo destes 60 anos.
Outro aspeto da nova imagem que a Igreja oferece de si mesma no Vaticano II é a colegialidade episcopal (Lumen Gentium, cap. III) ou sinodalidade, rompendo com o centralismo reinante por mais de oito séculos e que contrastava com a descentralização imperante nos primeiros séculos. A sinodalidade responde ao predomínio do aspeto hierárquico, que acentuou excessivamente a dimensão vertical da organização eclesial e teve como consequência um maior incremento da tendência para o centralismo no governo da Igreja, ainda que este centralismo tenha contribuído para salvar a unidade eclesial perante a desagregação que se produziu nas confissões protestantes de excessivo horizontalismo. A sinodalidade tão enfatizada atualmente revela uma transformação organizacional que privilegia a flexibilidade e a adaptabilidade, cruciais na sociedade em rede.
No Vaticano II, a Igreja responde a todas as questões levantadas pelo movimento modernista, processo que passa principalmente pela sua descentralização. Através da sinodalidade, a Igreja renuncia ao puro verticalismo e autoritarismo e propõe-se a ser comunhão e multilateridade, comunidade, antes de ser relação bilateral entre um indivíduo que manda e outro que obedece. No Concílio atribui-se também ao leigo o seu merecido valor e ele se torna agente das diversas pastorais. Essa mudança é fundamental na sociedade em rede, que questiona as instituições e põe em xeque as hierarquias e os absolutismos, mas ao mesmo tempo exalta o sujeito e lhe dá liberdade para manifestar-se com todas as suas convicções. Isto significa que o cristão (entendendo-se o cristianismo como um ethos, um modo de ser que envolve todas as dimensões do ser humano) tem um campo muito fértil para atuar e testemunhar sua fé no que hoje se chama ambiente onlife.
A sociedade em rede também cria condições para o cristão e a Igreja repensarem a própria identidade e se renovar, resgatando elementos fundamentais das suas origens, como o testemunho contínuo e a integralidade entre fé cristã e todas as dimensões da vida. Ela permite e facilita o encontro, o testemunho, as relações, a unidade, a comunhão, a partilha… elementos que estão na essência do Cristianismo. Partilhar de um contexto universal e uniforme é ideal para o desenvolvimento da Igreja que sempre foi “católica”, universal. Ao contrário do que inicialmente aparenta, a sociedade em rede e o ambiente digital oferecem à Igreja mais possibilidades e oportunidades do que desafios e ameaças, e aplicar plenamente o Concílio Vaticano II é essencial neste processo.
* Fr. Darlei Zanon, religioso paulino, formado em Filosofia pela PUCCAMP e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, recebeu o título de Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE-IUL.