Há 60 anos, decorria o Concílio Vaticano II, soprando novos ventos e apontando novos rumos à Igreja.
Esta série especial, de artigos de autoria do Frei Darlei Zanon, elenca algumas reflexões sobre os 60 anos do Concílio e os reflexos do CV II na Igreja de nosso tempo.
Com a constituição dogmática Lumen Gentium, vimos despontar um novo conceito de Igreja, não como sociedade perfeita e hierárquica, mas plural e missionária. Esta Igreja também tem algo a dizer ao mundo contemporâneo e é exatamente isso que vamos encontrar na Gaudium et Spes: as alegrias e esperanças, tristezas e angústias do mundo, sobretudo dos que sofrem, encontram eco na Igreja e no coração de Cristo.
No seu início, o Concílio Vaticano II não tinha uma comissão prevista para o estudo dos problemas sociais e da relação da Igreja com o mundo contemporâneo. Foi criada a partir do pedido do cardeal Suenes, da Bélgica, que salientou que no Concílio, além de esclarecer a Igreja ad Intra (voltada para si mesma), fosse também considerada a Igreja ad Extra (voltando-se para as realidades econômicas, políticas e sociais das pessoas no seu contexto).
Dos estudos dessa comissão surgiu um texto inicial que foi reelaborado e ampliado diversas vezes até ser promulgado no dia 7 de dezembro de 1965, data de encerramento do Concílio. A Gaudium et Spes foi o último documento aprovado, recebendo 2309 votos a favor, 75 contra e 10 nulos. Comparado com outros documentos do Concílio, o número de votos contra é alto, mas compreensível devido aos delicados temas que aborda.
A quarta das constituições do Vaticano II trata fundamentalmente da relação entre a Igreja Católica e o mundo onde ela está e atua. O seu texto é profundo e completo, constituindo a base de toda a Doutrina Social da Igreja. Mais tarde recebeu um complemento na Populorum Progressio apenas para reforçar a linha de pensamento assumida pela Igreja nesta área, ou seja, alertar para o descompasso crescente entre crescimento econômico e o desenvolvimento integral, para o contraste entre o progresso tecnológico e a capacidade produtiva, de um lado, e o subdesenvolvimento de tantos povos, de outro.
É considerada constituição pastoral, pois depois do «Proêmio» e da «Introdução», onde são indicadas sucintamente a metodologia e a condição do ser humano no mundo, apresenta a compreensão do ser humano e da sociedade em chave teológica (primeira parte – doutrinária) para depois tratar de alguns problemas concretos (segunda parte – pastoral).
A maior riqueza da Gaudium et Spes é apresentar um olhar profético, eclesiológico e pastoral sobre a sociedade, sempre em busca da promoção da justiça e da paz. Ela visa “iluminar o mistério do ser humano e cooperar na solução das principais questões do nosso tempo” (GS 10).
A sua primeira frase traduz o espírito do próprio Concílio como um todo: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por pessoas, que, reunidas em Cristo, são guiadas pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história.” (GS 1) Aí está expressa claramente a nova concepção de Igreja, povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito.
A «Introdução» recorda a necessidade de a Igreja conhecer o mundo e acompanhar as suas transformações técnicas e sociais. Faz uma contextualização geral dos problemas, das alegrias e das esperanças da época, que em geral valem ainda hoje.
Na primeira parte, o documento trata da doutrina da Igreja acerca do ser humano e do mundo. Aborda temas como a dignidade humana (nn. 12-22), a condição humana (nn. 23-32), a atividade do homem e da mulher no mundo (nn. 33-39) e o papel da Igreja no mundo (nn. 40-45). Enfatiza que o ser humano é um ser social, de relações, e que deve estar constantemente atento ao diálogo e ao respeito.
Na segunda parte, a Gaudium et Spes estabelece linhas pastorais, respondendo à sua missão no mundo: a Igreja deve ser como fermento e alma da sociedade, deve santificar/iluminar o mundo e conduzir todos ao Reino (cf. LG 40). Considera vários aspectos da vida humana e da sociedade contemporânea, respondendo a problemas concretos de maior urgência: matrimônio e família (nn. 47-52), progresso cultural (nn. 53-62), vida econômico-social (nn. 63-72), vida de comunidade política (nn. 73-76), promoção da paz e da comunidade internacional (nn. 77-90). Essa parte era inicialmente considerada como “anexos”, mas devido à sua importância e aos debates gerados foi incluída no corpo do documento.
Ao analisarmos com cuidado a situação da sociedade atual, em clima de crise econômica e principalmente de crise de valores, constatamos que os problemas não são muito diferentes, assumindo apenas uma nova face, mais moderna.
Uma releitura atenta da Gaudium et Spes, no contexto atual, pode significar uma grata surpresa, sobretudo nestas três dimensões: primeiro, embora publicada há quase 60 anos, ela continua trazendo elementos preciosos para entender as transformações por que passa a sociedade moderna; depois, ela fornece pistas para uma ação eficaz, seja do ponto de vista pastoral, seja do ponto de vista social e político; por fim, em conjunto com os demais documentos do Concílio Vaticano II, a Gaudium et Spes representa uma inflexão decisiva quanto à postura da Igreja diante dos principais desafios da modernidade.
Por ser o último documento aprovado, a Gaudium et Spes foi privilegiada e bebeu de toda a nova mentalidade conciliar. Ela põe em prática todas as novidades do Concílio, especialmente o quanto se refere a uma Igreja mais aberta, comprometida e missionária. Tem, portanto, especial ligação com o decreto Ad Gentes, sobre a atividade missionária da Igreja, que abordamos no mês de outubro, e que afirma logo no seu início: “A Igreja é por natureza missionária” (AG 2); e com a constituição Lumen Gentium, sobre a constituição da Igreja, que meditamos no passado mês de dezembro.
O conteúdo apresentado na Gaudium et Spes é de uma profundidade e beleza impressionantes e merece ser retomado com frequência por todos os cristãos. Com este exercício recordaremos o compromisso constante da Igreja, que é formada por todos nós cristãos, de “iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens e mulheres, de qualquer nação, raça ou cultura”. (GS 92) Continua sempre atual e significativo o “apelo à justiça e à paz” feito pelo Concílio.
No próximo mês deixamos as constituições apostólicas e iniciamos a abordagem das declarações Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, e Nostra Aetate, sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs. Até lá.
* fr. Darlei Zanon, ssp